Curiosidades

Com Maria Gal como Carolina Maria de Jesus, adaptação de 'Quarto de despejo' reconstrói antiga favela do Canindé em estúdio

O GLOBO visitou o set do longa-metragem dirigido por Jeferso De, com lançamento previsto para 2027

Agência O Globo - 08/12/2025
Com Maria Gal como Carolina Maria de Jesus, adaptação de 'Quarto de despejo' reconstrói antiga favela do Canindé em estúdio
Com Maria Gal como Carolina Maria de Jesus, adaptação de 'Quarto de despejo' reconstrói antiga favela do Canindé em estúdio; veja imagens - Foto: reprodução / youtube

Para interpretar Carolina Maria de Jesus (1914-1977) na adaptação cinematográfica do livro “Quarto de despejo”, prevista para estrear em 2027, Maria Gal mudou o cabelo, emagreceu 18 quilos e estudou com preparadores de elenco do Brasil e dos Estados Unidos. Mas um dos elementos mais importantes da caracterização está em suas mãos: um simples caderninho de aparência gasta e retrô, que reproduz os brochurões em que a autora mineira registrava seu cotidiano na favela do Canindé, em , nos anos 1950. Negra, periférica e com apenas dois anos de estudo formal, Carolina transformou sua rotina de fome e precariedade num texto clássico da literatura brasileira.

'Mãos à obra':

Retrospectiva 2025:

Mesmo quando não está na frente das câmeras, Gal imita o gesto de sua personagem. A atriz baiana carrega o caderno pelo set e anota ali seus pensamentos e observações diárias. O GLOBO visitou as filmagens do longa, intitulado “Carolina — Quarto de despejo”, que começaram no início de novembro nos estúdios Quanta Rio.

— Às vezes, Carolina tinha uma ideia enquanto estava catando lixo e então parava tudo para anotar — diz Gal, de 49 anos, que também produz o filme —Mas acho também que carregar um objeto de escrita traz um simbolismo: que filme brasileiro você assistiu em que aparece um corpo negro com livro nas mãos? Em geral, o que vemos são nossos corpos com armas.

Projeto de 11 anos

Com produção de Move Maria (produtora fundada por Gal), Raccord, Buda Filmes e coprodução da Globo Filmes, o projeto conta com profissionais negros na direção (Jeferson De), no roteiro (Maíra Oliveira) e na direção de fotografia (Lílis Soares). Gal, que comprou os direitos do livro originalmente publicado em 1960, sonhava em transformar “Quarto de despejo” em filme há 11 anos.

— Achava inacreditável não ter um longa sobre Carolina. Pensava: “Meu Deus, que racismo estrutural tão violento é esse? Como que ninguém enxerga essa mulher?” — diz a atriz, que além de uma extensa carreira no teatro esteve no elenco de novelas como “Poliana moça” (2022) e “Amor perfeito” (2023), e de filmes como “Dona Flor e seus dois maridos” (2017). — Conforme os anos passam, essa obra se torna mais atual. A Carolina falava de segurança alimentar, falava de protagonismo feminino e negro, saneamento básico, mãe solteira, violência contra a mulher... Ela escreveu para gente de hoje.

Empreendedorismo

Falar de Carolina Maria de Jesus também é falar de empreendedorismo. Afinal, como lembra Gal, a autora autodidata venceu barreiras sociais, buscou divulgação para seus diários e conseguiu ser publicada em diversos países. Essa ousadia inspirou a atriz. Um episódio de racismo — quando um diretor substituiu Maria Gal por uma atriz branca porque ela tinha “tom de pele mais comercial” — foi o estopim para que ela decidisse levar o sonho adiante.

Gal estudou roteiro, produção e marketing para entender “esse outro lugar do audiovisual”, como define a rede alternativa de parceiros que consolidou ao longo dos anos.

Gradativamente, foram entrando nesse círculo a produtora Clélia Bessa e o diretor Jeferson De, que já havia feito dois curtas sobre Carolina Maria de Jesus no início dos anos 2000.

— O livro é um diário, e diários são difíceis de filmar literalmente — diz Jeferson De, diretor de “Bróder” (2011) e (2021). — A Carolina repete, insiste, exaure, e essa repetição é a força da obra. Estamos adaptando isso de uma forma cinematográfica, mas nosso desejo é que o filme seja uma ponte para que as pessoas voltem ao livro, porque nada supera a escrita de Carolina.

O roteiro de Maíra Oliveira segue uma estrutura clássica, com início, meio e fim, e combina passagens do diário com episódios da vida da escritora. O personagem interpretado por , por exemplo, é uma mistura de todos os políticos (e falsas promessas) que a autora encontrou ao longo da vida.

O roteiro não é uma biografia, mas uma interpretação do olhar de Carolina sobre 1958, ano-chave de seu relato sobre a favela do Canindé. Jeferson, por sinal, passou os últimos dois anos mergulhados na década de 1950, quando foi diretor-geral da novela de época “Garota do momento”.

Cenário reconstitui favela

O cenário nos estúdios Quanta Rio reconstrói a Canindé de Carolina nos mínimos detalhes, dos barracos de madeira e papelão aos anúncios e produtos de época espalhados pelo chão de terra batida. Chegando mais perto das casas, dá para ver até falsas teias de aranha nas beiradas do teto. Ao fundo, uma tela de LED simula o horizonte da São Paulo tentacular. Ainda serão gravadas externas em locais descritos pela autora.

A câmera acompanha a transformação do olhar da escritora mineira, inclusive cromaticamente. Carolina dizia que a fome era amarela e invadia tudo ao redor. Era a forma como ela via o mundo.

— Falando da fome do ponto de vista de quem a viveu, Carolina foi uma espécie de fundadora da arte periférica — diz De. — Ela abriu um caminho para a gente falar de nós mesmos. A periferia é o lugar da novidade, da provocação. Sempre foi.