Curiosidades

Romance premiado de Catarina Gomes, 'Terrinhas' aborda com humor dicotomia entre o urbano e o rural

Vencedora do Prêmio Revelação Agustina Bessa-Luís em 2021, autora portuguesa usa batatas como metáfora da vida

Agência O Globo - 25/11/2025
Romance premiado de Catarina Gomes, 'Terrinhas' aborda com humor dicotomia entre o urbano e o rural
- Foto: Reprodução

Das lembranças mais remotas de Cláudia, as batatas representam sua infância. Sacas e mais sacas que seus pais traziam do campo, enchendo o carro, abarrotando a despensa e os armários ao ponto de os tubérculos predominarem no modesto apartamento. A menina não entendia o porquê da fixação, se na cidade havia muitos mercados que vendiam batatas, no que o pai respondia que as da “terrinha” eram especiais, pois tinham sabor incomparável.

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Com o tempo, Cláudia passa a entender as batatas como uma metáfora da vida: ao detectar algo prestes a apodrecer, basta cortar o pedaço suspeito a tempo de salvar o desperdício total. Torna-se designer de interiores, uma mulher estritamente urbana e sem laços. O campo se dilui no passado, um lugar enfadonho onde passava as férias escolares enquanto os colegas iam para a praia. Até que é surpreendida pela chegada de uma carta com o aviso de que um tio-avô desconhecido lhe deixou uma herança — e descobre que herdou “prédios rústicos”. O que seria isso? Uma segunda carta fornece novos detalhes, porém, para dar conta dos bens inesperados — e logo se livrar deles —, precisa regressar para Arrô, a aldeia onde estão as raízes que extirpou de si.

Esse é o mote de “Terrinhas”, romance da portuguesa Catarina Gomes que ganhou o Prêmio Revelação Agustina Bessa-Luís em 2021. Ao desembarcar no mundo rural, Cláudia tem que lidar com uma realidade de tipos e situações inusitados, gerando um choque cultural que abrange dos hábitos pessoais ao vocabulário. “O que raio é uma bouça? Um lameiro?” O estranhamento se agrava quando seu sobrenome começa a circular e trazer à tona a história de um antepassado malvisto entre os locais. Segredos que nunca chegaram até ela, pois, embora fizesse parte do tempo decorrido, toda distância se torna maior quando não sabemos por completo o que veio antes de nós. “O pouco que me contavam do seu passado bastava-me. Na altura, tinha a sensação de que os pais eram só feitos de presente e de futuro”, pondera a personagem.

Os volteios mentais, por sinal, são uma marca do texto. A autora retrata a desorientação de Cláudia numa voz narrativa que fica a todo momento deambulando pelo livro, tergiversando e entrando e saindo de digressões na investigação da memória. O mistério incidental é esvaziado de suspense para dar espaço a um humor pitoresco, que, por vezes, deixa a sensação de fazer mais sentido para o leitor português, a exemplo de uma indireta envolvendo um sujeito escorraçado e o Brasil como exílio. Da mesma forma, a edição que manteve a grafia do idioma original, com palavras rústicas para alargar a inadequação da personagem, reflete na experiência de imersão na trama, criando algumas dissonâncias por conta de expressões e construções próprias da nossa língua-mãe, mas incomuns ao linguajar brasileiro.

No fundo, esses idiomatismos contribuem para aquele que é o ímã do enredo: a dicotomia entre a cidade e o campo. E não apenas no contraste de costumes, e sim nos âmbitos psicológico e social, o conflito interno de quem procura pertencimento num ambiente a um só tempo conhecido e estrangeiro, por conta do desprezo a uma realidade diferente da sua.

Tanto que, ao descobrir a mancha em sua linhagem, a personagem se apropria da herança como dívida, iniciando uma busca por respostas — e, talvez de maneira inconsciente, reparação — que a faz assumir uma culpa que seus familiares anteriores resolveram com silêncio e abandono. Ir a fundo, neste caso, é olhar para trás e dar contornos mais claros a vidas sem as quais a sua inexistia, devolvendo à terra o valor de métrica entre começo e fim.

Embora carregado de idiossincrasias locais, “Terrinhas” fornece uma noção de memória e esquecimento que dialoga com o ímpeto universal de percorrer próprios caminhos, estabelecer destinos distantes, apagando as pegadas que levam à origem. O futuro pode ser construído individualmente, mas em todo passado há pessoas que moldaram nossas personalidades, nossos gostos, nossa visão de mundo, deixaram uma herança e um aprendizado. Mesmo que seja sobre batatas.

* Sérgio Tavares é escritor e crítico literário

'Terrinhas' Autora: Catarina Gomes. Editora: Dublinense. Páginas: 288. Preço: R$ 79,90