Cidades

A história de quem fundou Palmeira dos Índios e a luta secular por território

Arquivos e arraiais: como os xucurú-kariri fundaram a “Princesa do Sertão”

05/12/2025
A história de quem fundou Palmeira dos Índios e a luta secular por território
No alto da Serra do Goití, o cemitério indígena dos Xucurus-Kariris - Foto: Ilustração de IA

A história de Palmeira dos Índios — hoje conhecida nacionalmente como a “Princesa do Sertão” — nasce muito antes de sua emancipação política, muito antes da chegada das famílias sertanejas, e muito antes de qualquer traço urbano que se conhece hoje. Seu ponto de partida é indígena.

A cidade existe porque os Xucurú-Kariri — amálgama de Wakonâs, Kariris, Carapotós e Xucurús vindos de Pernambuco — fugiram do litoral sanfranciscano no século XVII para buscar refúgio nas serras repletas de palmeiras que marcavam a paisagem do lugar que se tornaria seu abrigo e, depois, uma cidade.

Eles chegaram para fugir das entradas e bandeiras, das tentativas de escravidão, da violência colonial e até da ameaça da fome, trazida pela expansão da pecuária que devastava a caça — base essencial de sua subsistência. Refugiaram-se entre 1659 e 1661, formando aldeias em serras e grotas como a Cafurna. Andarilhos por natureza, encontraram ali a possibilidade de existir longe da brutalidade dos colonizadores.

O NOME DA CIDADE: DE ARRAIAL DE ÍNDIOS A PALMEIRA DOS ÍNDIOS


A evolução dos nomes da localidade é, por si só, uma narrativa da presença indígena:

1. Arraial de Índios (ou Palmeira do Arraial)

A designação mais antiga da área, segundo a história oral, era Arraial de Índios — uma referência direta à aldeia formada pelos Xucurú-Kariri.

O termo “Arraial” era amplamente utilizado pelo governo português para qualificar aldeamentos indígenas formalizados, especialmente após a Carta Régia de 1705, que definia critérios administrativos para organizar comunidades nativas.

Com o crescimento populacional e a fusão de núcleos como Serra da Capela e Cafurnas, o arraial tornou-se um pequeno vilarejo, então chamado de Palmeira do Arraial — referência à grande quantidade de palmeiras que recobriam as serras.

2. A transição para Palmeira dos Índios

Com o tempo, o nome evoluiu para Palmeira dos Índios, expressão que sintetiza a origem dupla do lugar:

•“Palmeira”: devido à abundância de palmeiras que marcavam o território e serviam como referência geográfica.
•“dos Índios”: homenagem consagradora ao povo que deu origem ao agrupamento humano que se tornaria o município.

O nome atual, portanto, é um monumento vivo, inscrito na língua e na memória urbana, registrando para sempre o papel fundador dos Xucurú-Kariri.

PROVAS MATERIAIS DA PRESENÇA IMEMORIAL


A presença indígena não é apenas tradição oral — é arqueologia. Em 12 de maio de 1969, escavações na Serra do Goiti encontraram três igaçabas, urnas funerárias com:

•crânios fossilizados,
•ossos,
•colares de fragmentos ósseos,
•um cachimbo,
•e o crânio de uma criança.

Datadas de aproximadamente 400 anos, essas urnas formam o mais antigo cemitério indígena de Palmeira dos Índios.

UMA DEMARCAÇÃO QUE DUR0U QUASE 40 ANOS


Em 1818, os Xucurú-Kariri solicitaram a demarcação de suas terras — direito já reconhecido pelas leis portuguesas de 1647 e 1680. O processo só foi julgado em 1861, na Vila de Anadia, após 38 anos, 4 meses e 6 dias de espera.

A sentença deu ganho de causa aos indígenas, mas o triunfo veio tarde demais: quase todas as terras férteis já haviam sido invadidas, loteadas e transformadas em fazendas e casas.

O que deveria ser um título de proteção tornou-se, historicamente, o registro de uma perda.

Antes, o território reivindicado — com base ancestral — somava 13.684,81 hectares, incluindo áreas urbanas e rurais, hoje apenas áreas rurais totalizando 7 mil hectares.

CULTURA: A FORÇA QUE RESISTE


Mesmo com o impacto da colonização, que suprimiu parte da língua e introduziu o catolicismo, os Xucurú-Kariri preservam elementos centrais de sua espiritualidade:

A Cerimônia do Ouricuri

A celebração mais sagrada. Um ritual fechado, no terreiro (porá), no qual os participantes vestem o Proiá — túnicas de palha de agave que os cobrem por inteiro.

Nenhum não-indígena pode participar. É o ato mais profundo de religação com Ei-U-Ká, o criador.

O Toré

Dança-oração marcada por cânticos que reproduzem sons da natureza, também associada à segunda divindade da cosmologia Xucurú-Kariri.

DIREITOS: O QUE A CONSTITUIÇÃO GARANTE


A Constituição Federal reconhece:

•direito à alteridade cultural,
•direito à terra tradicional,
•e o usufruto exclusivo das riquezas naturais — caça, pesca, madeira, plantio, minerais — desde que preservada a sustentabilidade.
Embora integrados à sociedade (com CPF, RG e título de eleitor), o usufruto garante autonomia territorial e reprodução cultural.

A HISTÓRIA QUE RESISTE


A trajetória dos Xucurú-Kariri — desde a fuga dos colonizadores até a demarcação que levou quase 40 anos — revela que, embora a justiça seja lenta, a memória indígena é persistente.

E o nome “Palmeira dos Índios” permanece como testemunho diário dessa origem: uma cidade que nasceu da resistência.

Vladimir Barros

Vladimir Barros

É natural do Rio de Janeiro e radicado em Alagoas. Advogado e jornalista filiado ao SINDJORNAL, formado na Universidade Federal de Alagoas. Membro da Associação Alagoana de Imprensa e da Academia de Letras de Palmeira dos Índios, Alagoas. É Diretor de jornalismo do Grupo Tribuna do Sertão