A homologação que não vem (uma crônica longa sobre uma espera que já virou ferida)

25/11/2025
A homologação que não vem (uma crônica longa sobre uma espera que já virou ferida)

Há cidades que carregam esperas. Algumas esperam chuva, outras esperam estrada, outras esperam prefeito que cumpra o que diz. Palmeira dos Índios — essa cidade que existe no mapa, mas existe ainda mais na alma de quem conta suas histórias — espera uma assinatura. Só isso: uma assinatura. E, no entanto, é essa ausência de tinta no papel que tem sido suficiente para desatar medos, alimentar ódios silenciosos e fazer tremer o chão de famílias inteiras.

A homologação das terras indígenas, que deveria ser um ato jurídico claro, virou uma pedra no meio do caminho, um rosário interminável de protelações. O processo se arrasta como mula cansada, enquanto autoridades, uma a uma, começam a manifestar preocupação com o rumo da tensão. Ministério Público, Defensoria, juízes que não dormem tranquilos há semanas — todos sabem que basta uma faísca para incendiar uma história que já nasceu acesa.

E se uma tragédia acontecer — e Deus nos livre dessa palavra pronunciada em voz alta — não haverá dúvida sobre o nome que assinará a responsabilidade política: Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República, que carrega hoje sobre a mesa o peso da decisão e que, por razões que só ele conhece, insiste em adiar o inevitável.

Enquanto isso, a vida segue — ou tenta seguir — no compasso de quem não sabe o dia de amanhã.

Nas grotas, nos sítios, nas beiras de cerca, pequenos agricultores contam suas horas como quem conta moedas. Há minifúndios que não chegam a uma tarefa de terra, mas que carregam dentro de si cinquenta, sessenta, até cem anos de memória familiar. Casas que foram levantadas a mutirão, galpões onde o milho secou por décadas, chão onde se enterrou o umbigo dos filhos.

E é essa gente que hoje dorme com medo.

Medo porque, se a homologação vier - e ela virá, como afirmou o coordenador regional da FUNAI em entrevista à Tribuna do Sertão -, a próxima etapa será a desintrusão. Palavra fria. Significa a retirada das famílias. Significa sair — e sem saber para onde.

O Estado brasileiro, o governo de Alagoas, o Incra, o Iteral… nenhum deles ofereceu até agora uma solução concreta, palpável, humana. Não há plano de reassentamento, não há destinação de terras, não há resposta. Só há o silêncio do poder público, que pesa mais que qualquer decreto.

Mas, como se não bastasse o conflito já doloroso, ainda há os oportunistas. Há sempre.

Numa audiência pública, um ex-deputado — desses que o povo, com sabedoria, aposenta sem precisar de INSS — resolveu subir ao palanque para ‘ensinar’ história. Tucano de plumagem desbotada, passou vinte anos na Assembleia, carregando a bandeira de Fernando Henrique Cardoso, o presidente que de fato iniciou as demarcações no país. Vinte anos com a caneta na mão, vinte anos com força política, vinte anos para resolver o problema… e nada. Absolutamente nada.

Mas bastou que suas próprias terras caíssem dentro da área demarcada para que o nobre aposentado virasse defensor ferrenho dos pequenos produtores. Ironia pouca é bobagem.

E, ontem, sob o sol quente da capital, ele tentou reescrever a história, acusando escritores e historiadores locais de serem culpados pela demarcação indígena. Ele, que mal assina o próprio nome, resolveu ensinar história a quem dedicou a vida aos livros. Vomitou impropérios, incitou resistência contra ordem judicial, posou de herói de ocasião.

Estranho… porque, quando a FUNAI esteve em suas terras para fazer o levantamento, não houve resistência, não houve discurso inflamado, não houve palanque. Assinou o termo caladinho. Feito um cordeiro.

E é preciso dizer: esta crônica não toma lado. Não toma partido contra indígena, nem a favor de proprietário. Não escolhe bandeira, porque bandeira demais só coloca fogo onde já tem brasa.

O que se busca aqui é conciliação — palavra bonita, difícil, mas ainda possível.

O que está feito, está feito. O processo é irreversível, disse Cícero Albuquerque, coordenador da FUNAI, com todas as letras. Remar contra a maré agora é só cansaço. É gastar energia no que não voltará atrás.

Resta lutar pelo que vem depois: indenização justa.
Justa pelo tempo vivido.
Justa pelo chão cultivado.
Justa pela vida que se ergueu naquelas terras.

A União tem dinheiro — e tem.
Tem obrigação — e tem.
E tem precedentes: na década de 90, meu pai, Ivan Barros, enfrentou acusações injustas de ambos os lados, mas trabalhou para que proprietários fossem indenizados e pudessem reconstruir suas vidas. A FUNAI, através do então Ministro da Justiça Renan Calheiros pagou. As famílias seguiram. Os indígenas ocuparam. E a cidade continuou existindo.

Hoje, trinta anos depois, a mesma história volta, mas embaralhada por paixões políticas mal resolvidas. No passado, acusaram Ivan Barros de defender apenas os proprietários. Agora, um ex-deputado aposentado o acusa de escrever a história a favor dos indígenas. Uma contradição que caberia num livro de tragicomédia. O tempo dá voltas — mas não dá vergonha a alguns.

E, no centro disso tudo, há uma cidade cansada, que só quer paz.

Brancos, indígenas, agricultores, comerciantes, professores, estudantes — gente que vive, trabalha e ama Palmeira dos Índios. Gente que sabe que não vive numa guerra, mas está sendo empurrada para dentro de uma.

E é por isso que esta crônica é também um pedido.

Um pedido para que as autoridades ajam, antes que a história vire manchete trágica.
Um pedido para que os órgãos resolvam o reassentamento antes da retirada.
Um pedido para que a indenização seja digna, humana, correta.
E, sobretudo, um pedido para que não se jogue gasolina no que já está incendiado.

Porque, no final das contas, a terra é importante — mas a vida é mais.
A memória é valiosa — mas a paz é indispensável.
E Palmeira dos Índios não é território de guerra.

É território de gente.
De gente que merece continuar vivendo sem medo.
De gente que merece justiça, não vingança.
De gente que merece humanidade, não palanque.

Se a homologação é irreversível — e é —, que seja então seguida de dignidade.
Porque dignidade, sim, é uma decisão que não depende de decreto.
Depende de coragem.

E coragem é o que está faltando no Planalto.

Aqui não. Aqui sobra.

Vladimir Barros

Vladimir Barros

É advogado militante, formado pela Universidade Federal de Alagoas e pós-graduado em Direito Processual e Docência Superior. Jornalista filiado ao Sindjornal/FENAJ, é membro efetivo da Associação Alagoana de Imprensa (AAI) e da Associação Brasileira de Imprensa; Editor do Jornal Tribuna do Sertão. É também membro da Academia Palmeirense de Letras (Palmeira dos Índios) e fundador da Rádio Cacique FM.