O preço do silêncio
Há cidades que vivem de comércio, outras de turismo, algumas de fé.
Mas há também aquelas que sobrevivem — e apenas sobrevivem — do silêncio.
Silêncio comprado, negociado, parcelado em suaves prestações de favores e conivências.
Silêncio que não se escuta, mas se sente.
Um silêncio que pesa.
Numa cidade pequena, onde todo mundo conhece a vida de todo mundo, a verdade nunca anda sozinha: caminha sempre escoltada pelo medo.
Aqui, falar demais é arriscado.
Exige coragem — ou loucura.
E como coragem anda em falta e loucura já tem demais, a cidade aprendeu a calar.
No início, o silêncio é pequeno.
Uma omissão aqui, um “deixa pra lá” ali.
Um servidor que vê o desvio, mas finge não ver porque “precisa do emprego”.
Um comerciante que aceita a troca de favores para não perder a clientela importante.
Um político que fecha os olhos porque abrir significaria perder o tapete vermelho que tanto custou a conseguir.
E, pouco a pouco, a cidade vai se acostumando.
A corrupção deixa de ser crime e vira um método.
Um hábito.
Uma cultura.
Uma coreografia antiga que todos dançam sem pensar — ou pensando demais.
Quem fala demais perde o contrato.
Quem denuncia perde a amizade.
Quem exige lisura perde o convite para a festa.
E quem ousa mostrar documentos — esse perde até a paz.
Mas o preço do silêncio não é barato como parece.
Ele custa caro.
Custa noites mal dormidas, custa consciência pesada, custa aquela sensação de que algo se quebrou por dentro e não tem artesão que conserte.
O silêncio cobra juros.
E cobra alto.
Enquanto isso, os donos da cidade — aqueles que confundem poder com propriedade — dominam o ambiente com sorrisos largos, promessas generosas e um discurso tão ensaiado que até parece honesto.
Vivem dizendo que “a cidade está crescendo”, que “as coisas melhoraram”, que “é preciso confiar”.
Mas, nos bastidores, o crescimento é só deles.
O melhoramento é seletivo.
A confiança é trocada por favores que não aparecem nas licitações.
E o povo?
O povo segue vivendo como dá, cuidando da própria vida, acreditando que “é assim mesmo”, que “sempre foi assim”, que “não adianta mexer com gente grande”.
A cidade pequena desenvolve essa mania cruel de achar que a injustiça é inevitável, que honestidade é luxo, que ética é artigo importado.
Mas, mesmo num lugar acostumado a abaixar a cabeça, sempre existe alguém que levanta.
Sempre há aquela pessoa que, mesmo tremendo por dentro, decide falar.
E quando alguém fala, algo na cidade se move — não é revolução, mas é rachadura.
E rachadura em silêncio é como rachadura em parede antiga: uma hora a estrutura cede.
O preço do silêncio é perder a alma.
E a alma de uma cidade é seu povo — quando o povo aceita demais, a cidade apodrece por dentro, como fruta bonita por fora e bichada por dentro.
A corrupção não nasce grande: ela é alimentada no escuro, nutrida pelas bocas que calam, protegida pelos olhos que fingem não ver.
Até que um dia, inevitavelmente, o silêncio cansa.
Cansa porque sufoca.
Cansa porque mata.
E, quando o silêncio começa a incomodar mais do que o barulho, a cidade aprende que falar é caro — mas calar é muito mais.
A redenção começa no primeiro “não”.
No primeiro “chega”.
No primeiro cidadão que recusa a troca, que rasga a barganha, que desmancha o esquema, que escolhe perder o contrato, mas salvar a consciência.
É assim que as cidades renascem: não pelo grito dos poderosos, mas pela coragem silenciosa dos que recusam o silêncio.
E então, finalmente, a cidade respira.
Devagar, mas respira.
Porque quando alguém quebra o ciclo da cumplicidade, abre-se uma clareira — pequena, mas luminosa — onde a honra ainda pode florescer.
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