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Considerações quase gregas sobre o tempo

18/08/2022
Considerações quase gregas sobre o tempo

Para os gregos há o tempo de Chronos, que é o mais novo dos poderosos seis Titãs, pertencentes à geração de seres divinos anteriores aos olímpicos. É filho de Urano, deus do Céu, e de Gaia, deusa da Terra. Chronos é o deus do tempo medido, hoje subordinado ao relógio; tempo cronológico.

Chornos devorava os próprios filhos, precavido, para que nenhum deles pudesse roubar-lhe o trono. Réia, que gerou Zeus, conseguiu salvá-lo desse triste destino. A preocupação de Cronos demonstrou-se pertinente: Zeus destronou Chronos e tornou-se o poderoso deus dos deuses.

Zeus teve filhos, o último foi Kairós, também representante do tempo. Mas não lhe interessava o tempo medido; atinha-se ao tempo do gozo da oportunidade, o do prazer do presente. O tempo de Kairós não é cronometrável, mas sentido em intensidade. É o sentimento do dia aproveitado – carpe diem.

O tempo kairológico, contudo, não é administrável, no sentido de que se possa engendrá-lo; ele acontece, podendo ser percebido, empolgado e desfrutado. No Brasil há uma expressão antiga que o explicita: “Aproveite o cavalo que passa encilhado”; mais modernamente: “Senso de oportunidade”.

Oportunidade do acontecimento marcante, pleno de significados gozosos. Quando dizemos que a felicidade é feita de momentos, talvez estejamos referindo os gratificantes instantes kairológicos que nos qualificam a existência que, se não cuidamos, passa na estafante rotina cronológica.

Ainda há Aíôn, divindade relacionada à eternidade, não cognoscível. Soe ser associado ao que há de misterioso, com o que havia antes de nos sabermos humanos, com o que haverá após o nosso fim. O tempo aíônico, a humanidade o prescruta, mas, por enquanto, não deu conta de o explicar.

Esse último tempo, ou ideia de tempo, pela dificuldade intrínseca da sua definição, é pouco referido. Parece-me, inclusive, que sobre ele mais se pensou nos tempos romanos (quando Roma tomou a Grécia, a cultura grega, em grande parte, tomou Roma) do que nos tempos helênicos.

O tempo cronológico é o tempo do controle. Como função regulamentar, é útil ao tempo disciplinar do sistema capitalista; no “modo de vida” neocapitalista, foi subjetivado. Parece que as pessoas andam com um relógio-deus controlando-as, determinando-lhes a sequência dos momentos da vida.

Em assim sendo, a mitologia grega terá toda razão: Chronos impiedosamente come seus filhos. Somos os filhos do tempo; o tempo nos comerá. Cabe o trocadilho: é uma questão de tempo, isso de o tempo nos dar fim. O possível está, pois, no despertar para a existência redentora de Kairós.

O tempo kairológico é muito usado pelos cristãos (que, igualmente, tomaram dos gregos muito do que “filosofam”, pouco citando quem copiam: Platão e Aristóteles). A cristandade pretende que o tempo de Kairós é o tempo da sua divindade, por variar do típico tempo terrestre dos nossos dias.

É uma usurpação. Se, de fato, trata-se de um tempo espiritual, dos sentimentos de estar no mundo, e de bem aproveitar as oportunidades, é, todavia, um tempo do espírito grego antigo, que não vai para o céu ou para o inferno, mas vive a vida. Esse tempo emprestaria qualidade à humanidade.

Minúcia gramatical: é de propósito que ponho o tempo como sujeito do período, quando afirmo que ele emprestaria qualidade à humanidade. E flexiono o verbo emprestar no futuro do pretérito porque Kairós se dispõe ao empréstimo, mas não o aproveitamos, ficamos com o tempo comercial de Chronos.

Sentido da História: ao vivermos em uma civilização que entrega o tempo de qualidade da vida à divindade cristã, passamos a considerar esse tempo como epifania religiosa; nós o recebemos como graça divina, anulando-nos enquanto agentes da própria vida, do tempo dos seus prazeres, inclusive.

Aspecto do título: escrevo considerações quase gregas sobre o tempo por cautela com provável anacronismo (atribuir a uma época ideias e sentimentos que são de outra época, Houaiss). Jamais entenderemos de todo um grego, vivente de outro lugar e de outro tempo; seres de outra cultura.

Mas, não será por acaso que os pensadores gregos são, ainda hoje, os mais referidos em produções acadêmicas por todo o mundo. É que, sobretudo, eles falavam de vida, e o faziam porque se atentavam em dar forma e conteúdo ao seu viver. A eles não bastava estar vivos, haviam de bem existir.