Variedades

‘Leste’, a fábula musical sobre um teatro que luta para renascer

12/11/2021

O diretor polonês Jacob Rotbaum (1901-1994) travou uma peregrinação pelo mundo enquanto fugia da perseguição contra os judeus na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Passou por Estados Unidos, Canadá, Argentina, França e, convidado pelo Instituto Cultural Israelita Brasileiro, montou o espetáculo Um Sonho de Goldfadn, que lotou o Teatro Municipal de São Paulo, em 1948, por duas semanas.

A peça de sua autoria, falada em iídiche, é uma fábula musical em torno de um teatro que luta para renascer depois da devastação de uma guerra. A produção reuniu artistas e integrantes da comunidade judaica – muitos, na época, empenhados na construção da Casa do Povo, centro cultural no Bom Retiro, que seria inaugurado em 1953.

Sete décadas depois, o mundo e o teatro, traumatizados pela covid-19, procuram caminhos possíveis de interação. Idealizado por Benjamin Seroussi e Hugueta Sendacz, o espetáculo-instalação Leste, com adaptação e direção de Martha Kiss Perrone, se apropria de Um Sonho de Goldfadn para criar conexões entre o extermínio de um povo e a necessidade de reinvenção artística.

Leste estreou nesta semana como uma experiência audiovisual que conversa com as artes cênicas, o cinema e a música, em um trânsito pela própria Casa do Povo. A temporada – de quinta a sábado, às 20h, e domingo, às 19h, até 5 de dezembro – tem ingressos gratuitos e receberá 50 espectadores por sessão.

ENFRENTAR A DOR

Muita resiliência e uma imensa capacidade de invenção. É o que explica a concretização do projeto para Martha Kiss Perrone. “A nossa geração não tinha vivido uma tragédia dessas proporções e precisa enfrentar essa dor”, afirma a diretora, de 39 anos. O projeto nasceu de um desejo de Hugueta, uma das fundadoras da Casa do Povo, mas o texto original, perdido, precisou ser procurado mundo afora. Em 2014, Seroussi encontrou uma versão completa na Polônia e, três anos depois, Martha, também em Varsóvia, achou as partituras dos números musicais.

Os trabalhos foram freados pela pandemia e, em dezembro passado, Martha entendeu que ainda não seria possível entrar em cartaz com segurança em 2021. A ideia de levantar um espetáculo com atores e músicos ao vivo percorrendo os espaços da Casa do Povo junto do público foi revista. “O teatro se exilou no cinema para continuar existindo e não tínhamos espaço para frustração. Por isso decidimos realizar o filme mantendo a proposta imersiva, porque essa obra nasce na pulsão de sua época”, define.

Entre o sonho, a ficção e o documentário, Leste conta a história de um teatro ameaçado. O diretor de uma companhia de Varsóvia se vê obrigado a tirar do repertório todas as peças em iídiche depois da prisão do ator principal (interpretado por Rodrigo Bolzan), engajado na resistência. O elenco de Leste, completado por Amanda Lyra, André Lu, Assucena Assucena, Heitor Goldflus e Vitória Faria, colaborou com depoimentos sobre experiências pessoais e artísticas, algumas delas envolvendo memórias de diáspora.

O processo de ensaios e filmagem, em fevereiro e maio, aconteceu no Teatro Taib, que fica no subsolo da Casa do Povo e está desativado há 20 anos. Aliás, é nas ruínas do Taib, com vistas a partir do balcão da sala, que se dá o prólogo de Leste. A imersão do público segue no salão do segundo andar, onde duas telas foram instaladas para a projeção do filme, com a plateia acomodada no meio.

RESSURREIÇÃO

Em meio a tantas simbologias, o Taib também ensaia sua ressurreição. Palco iluminado e combativo, o teatro, inaugurado em 1960, entrou em decadência nos anos 1980 e deu espaço a montagens amadoras do bairro na década de 1990. A reforma estimada em R$ 4 milhões chegou a ser recalculada para R$ 1,5 milhão há dois anos. Na mesma época, uma campanha para quem desejasse se tornar patrono das 300 poltronas da sala ganhou a adesão de quarenta pessoas, que compraram suas cadeiras, com doações que somaram R$ 170 mil.

Seroussi, diretor da Casa do Povo, adverte que, devido à inflação, os orçamentos serão, mais uma vez, revistos. A campanha, porém, ganhará fôlego no começo de 2022, seja através do estímulo de doações diretas ou das leis de incentivo. “A retomada do Taib é um sonho a médio prazo, mas, com a estreia de Leste, convidamos as pessoas a sonharem coletivamente”, provoca Seroussi. “A surpresa não é o estado em que o Taib se encontra, mas o fato de ele ainda existir e, logo, vem a certeza de que não podemos perdê-lo.”

ACERVO COMEÇOU COM VINDA DE IMIGRANTES

Além do Teatro de Arte Israelita Brasileiro (Taib) e de alguns coletivos, funciona na Casa do Povo uma biblioteca com mais de 10 mil itens, entre documentos, publicações e livros raros.

O acervo da Casa começou na década de 1930 com a chegada dos imigrantes do Leste Europeu trazendo os primeiros livros, boa parte deles em iídiche, a língua falada pelos judeus do leste da Europa. Itens do acervo podem ser encontrados também online, no banco de dados da Casa do Povo.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Autor: Dirceu Alves Jr., especial para o Estadão
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