Variedades

‘Um Homem Só’, de Ishwerwood, volta às livrarias

24/10/2021

George Falconer é um típico inglês perfeccionista. Tamanho zelo se revela em suas abotoaduras, terno bem cortado e barba impecável. Da casa no Beco da Canforeira, onde mora há anos, ele observa o mundo exterior com a curiosidade de estrangeiro, mas não por ser forasteiro na ensolarada Los Angeles. Ele é um homem solitário de meia-idade e homossexual, discreto, vivendo entre a casa e o trabalho.

Embora tenha construído parte da vida onde está, a visão descortina para além dos olhos o típico sonho americano: crianças barulhentas e seus pais invasores daquele bolsão idílico. George precisa se levantar do trono, seu refúgio, para refletir e espionar sem ser visto, começar o dia e ir para a ribalta, onde dará um discurso inspirador sobre medo e Aldous Huxley. O medo, segundo ele, é o instrumento de controle da sociedade americana. Não por acaso, o livro foi lançado nos EUA em 1964, década que vivia os efeitos colaterais do macarthismo e da crise dos mísseis.

Em Um Homem Só, romance de Christopher Isherwood relançado depois de décadas no esquecimento, o leitor percorre um dia na vida desse professor de literatura, que foi interpretado no cinema pelo também inglês Colin Firth. Conhecido por retratar uma Berlim lendária, no período anterior à 2.ª Guerra, Isherwood foi um escritor itinerante. Nascido há quase um século na Inglaterra, ele viveu parte da juventude na efervescente capital da República de Weimar, tendo retratado Berlim como centro cosmopolita no velho continente. Acompanhou de perto a eclosão das vanguardas e a liberação sexual.

O escritor perscrutou o submundo berlinense dos cabarés e bares intelectuais, tendo escrito, em 1939, Adeus a Berlim, romance tão bem-sucedido que inspirou o diretor Bob Fosse a realizar o clássico musical Cabaret. Nele transitavam mulheres e homens insinuantes, prostitutas e intelectuais. É essa atmosfera glamourosa que se lê no livro, adaptado para o cinema com Liza Minelli no papel da dançarina Sally Bowles e Michael York, como o alter ego do escritor.

Enquanto Adeus a Berlim diz muito sobre a juventude de Isherwood, o leitor que tem em mãos Um Homem Só, agora em tradução de Débora Landsberg, notará um escritor maduro que refinou o retrato do solitário na meia idade.

Ambientado em Los Angeles, onde Isherwood terminou seus dias nas montanhas de Santa Mônica, a história joga luz sobre a autodestruição traiçoeira que a depressão provoca em George, após perder seu companheiro de anos. O périplo de um dia na vida do professor é um artifício recorrente na literatura. Isherwood, para os padrões da época, inova ao eleger um protagonista queer. Do autor, a Companhia das Letras também vai relançar em breve Adeus a Berlim.

Isherwood inspirou contemporâneos a escrever sobre a homossexualidade de seu tempo, alguns deles seus amigos, como Stephen Spender, autor de O Templo, e o poeta W.H Auden. Mesmo hoje, escritores aclamados como Alan Hollinghurst (A Biblioteca da Piscina) e Garth Greenwell (O Que te Pertence) revelaram ter Isherwood como referência.

Em Um Homem Só, a angústia interior é o motor da narrativa. Isherwood trouxe para a literatura complexos que atormentam os gays, como a questão do culto à imagem, a solidão, a busca por um ideal perfeito de beleza, como queriam os gregos. Na trama, o professor se envolve com um de seus alunos, tema não inusual na literatura do gênero, tratado, contudo, com frescor, como fez Greenwell. É impossível não perceber a silhueta de Isherwood na história de Mitko.

As imagens evocadas no romance são pensadas com cuidado para dar tom de contraste em um único dia, como o jogo de tênis que exala uma carga homoerótica e instiga o professor, à luz da manhã, bem como o trânsito dele pelas suas reminiscências na juventude e na academia local.

Do Eros, ele decai ao nauseante, simbolizado pela incursão em um hospital, ocasião em que George vai visitar Doris, uma conhecida. É interessante notar essa disputa entre a vida pulsando, emanando de determinados personagens, versus o fétido, que contamina o ambiente. A morte, essa personagem insubstituível na obra do escritor, é uma espécie de fim que se alastra ao longo do livro, cedendo espaço ao breu, ao luar. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Autor: Matheus Lopes Quirino, especial para AE
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