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Nossos ódios, nossos dissensos: Política despolitizada

11/06/2021
Nossos ódios, nossos dissensos: Política despolitizada

Pesquisas de opinião pública nos trazem “fotografias” da nossa mentalidade, ou seja, de nós mesmos. Ainda que cada qual se sinta um caso à parte, somos estatística. Um bom estatístico nos sabe melhor do que nós nos sabemos.

Com algoritmos, estas leituras de nós são efetuadas no Facebook, no Instagram, no Youtube, no cartão de crédito. Damo-nos à transparência mais do que imaginamos. Nossas concepções da vida pública, portanto, são capturáveis e quantificáveis.

Dados sempre podem ser manipulados, e não faltam manipulações escandalosas já denunciadas. De toda sorte, quem acompanha a opinião geral que se formou sobre a política brasileira sabe que há dados que se vêm confirmando.

Cresce descrença na política tradicional – Ideia Big Data (https://goo.gl/X9wy7k): “Gostariam de ver cidadãos comuns como candidatos em 2018, 79%; meu voto é na pessoa e não me importo com partido político, 77% (no Nordeste, 90%)”.

A população considera, parece, que o político tem um vício de origem, como se adviesse de um lugar social à parte, como se não fosse eleito. Também, os brasileiros em geral valorizamos a relação personalizada, desprezando a organização partidária.

Conforme o artigo citado, “na minha vida cotidiana, não me importa que uma política pública seja de direita ou de esquerda, o importante é que torne a minha vida melhor: 72%”. Na organização da Sociedade, desimporta o conceitual; conta a solução do “meu” problema.

Permanecemos com a mais marcante das nossas heranças políticas: o coronelismo. Não se discutem ideias ou formas de organização pública; vale a relação com a personalidade que me atende; eu quero resolver as minhas questões.

Jürgen Habermas, Teoria da Ação Comunicativa: a Sociedade deve criar pactos de interesse geral por consensos, os quais são formados a partir da possibilidade de igual participação argumentativa de todos os interessados.

A formação de consensos é a base da Democracia. A eleição de representantes de uma maioria não basta, mas uma legitimação geral de políticas públicas que resultem minimamente consensuais, ou sejam aceitas como de interesse geral.

O caminho é a persuasão. O político forma consensos com recursos persuasivos. Habermas diz racionalização: de forma pública, apresentação de ideias e sustentação de proposições com o intuito de legitimar por formação de consensos.

Ora, dificilmente se formarão concepções de interesse público geral em torno de políticos que Habermas nomearia instrumentais, de personalismos, de interesses particulares. É improvável que se organize a administração pública à parte de meios institucionais.

Sem a construção coletiva de conceitos assumidos e articulados por siglas partidárias institucionalizadas não há consensos. Então, se governar é consubstanciar conceitos e realizar propostas anuídas, ideias e instituições são necessárias.

Democracia pede sujeito democrático, sujeito disposto à participação nos recursos inventados para se viver em democracia, quer dizer, nos partidos. Participação é mais do que crítica ressentida, do que discurso para o outro, ou contra o outro.

Participação é um discurso que me interpela a mim mesmo sobre o inscrever-me nas instâncias transformadoras de ideias em atos. Não há discurso “pra minha turma” que transporte uma ideia à legitimação coletiva. Não há política sem política.

A busca da concordância cívica não advirá só dos partidos políticos, evidentemente. Os tantos meios de interlocução, todavia, não são licença para indivíduos sem apetência política pensarem que se fazem substitutos do político.

As redes sociais são talvez o sistema de comunicação de abrangência jamais imaginada por Habermas. São a contribuição mais eficiente que as modernas tecnologias de relações pessoais poderiam trazer para o fomento do diálogo nacional.

Sua ocupação, contudo, não é dialógica nem racional. As falas não contêm interlocução, não formulam argumento. As redes sociais foram tomadas por discursos rancorosos que não contemplam interesses gerais. Sobre elas, se Habermas as estudasse, talvez pensasse:

“São lugar de transcendência, nela falantes e ouvintes se encontram; é onde podem levantar, uns em relação aos outros, a pretensão de que suas exteriorizações condigam com o mundo objetivo, social ou subjetivo”.

Seria onde poderiam “criticar ou afirmar pretensões de validade, resolver dissenso e obter consenso” (editado de Habermas, Jüngen, Teoria do agir comunicativo: Sobre a crítica da razão funcionalista, Martins Fontes).

Redes sociais, enfim, são meio de fazer política, não substituem a política. Ainda bem que seus atores – os que destilam ódio – não ocupam o lugar dos políticos. Talvez os políticos, ainda que prestem pouco ou fomentem ódio, sejam menos odientos que tantos internautas.

As pesquisas nos informam sobre nós: políticos não nos importam. Não se trata de substituir os imprestáveis. A política mesma não nos interessa. Cultivamos rancores, desprezamos ideias. Não conceituamos, cuidamos de nos insultar.

O coronelismo é mesmo a nossa matriz política não vencida: somos “nós contra eles”, danem-se os partidos, votamos em pessoas, valem interesses pessoais. Argumento, formação de consenso, essas coisas não habitam a nossa imaginação.

Bem, pouco racionais e muito temperamentais, imperativamente nos encontraremos com eleições. Em grande parte, seremos o que os políticos que elegermos são e serão. São eles que traçam as diretrizes nacionais. Não importa gostar disso, trata-se de um fato.

Venho ao assunto porque não quero ser só estatística. Ação comunicativa, democracia deliberativa: os que se têm na conta da boa cidadania, conversem, façam política. Candidatem-se. Derroguem a animosidade, legitimem suas ideias com persuasão.