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As cinzas dos canceladores

19/02/2021
As cinzas dos canceladores

Já ri muito e, é claro, aprendi muito com as peripécias Bukowski. Não. Não estou me referindo ao desenho animado do Kick Buttowski que, também, gosto muito. Refiro-me às obras do escritor Charles Bukowski.

Certa feita, o figurão havia escrito que o mundo inteiro, todinho ele, seria como um grandessíssimo saco de merda, sob nossos ombros, se rasgando, de ponta a ponta. Pois é. Não temos como salvá-lo e é praticamente impossível que toda a imundice não se derrame sobre nosso lombo. Sem chance.

Eis aí uma forma distinta e bem humorada para dizer que tudo nessa vida, tudo que está debaixo do sol, não passa de vaidade, como nos ensina o livro do Eclesiastes. E quem não sofre com o fardo do envaidecimento que atire o primeiro torrão de esterco que caiu de seu fardo rasgado.

Claro que ninguém admite que tem lá o seu quinhão dessa tranqueira, da mesma forma que um viciado não admite que o é, e que precisa de ajuda para se libertar dos grilhões da dependência química porque, como todos nós muito bem sabemos, não basta termos a verdade esfregada em nossas ventas; é preciso que a reconheçamos e a aceitemos nos átrios de nosso coração seboso.

Poderíamos aqui, nessas linhas tortas, apontar vários casos bem significativos para meditarmos sobre isso, já que estamos às portas da quarta-feira de cinzas e do Tempo Quaresmal, mas, penso eu, que não há nada mais ilustrativo para refletirmos sobre essa chaga, em nossa época, do que a tal da “cultura do cancelamento”.

Já pararam pra pensar o quanto isso é algo pretensioso, o quanto isso é algo maliciosamente demoníaco? Não? Então, pare tudo e vem comigo. Vejamos: uma chusma de sujeitos – porque os canceladores nunca agem sozinhos, no limpo – sai sentenciando a danação, absoluta e irrevogável, inúmeras pessoas, simplesmente porque elas pensam duma forma diferente da deles, logo, por serem pontos divergentes, eles não medem esforços para enxovalha-los das formas mais vis possíveis e pensáveis.

E se isso já não fosse o bastante, ao final do linchamento virtual, esses bons-moços candeladores fazem pose de vítima injustiçada que está apenas “lutando por um mundo mais justo e democrático”, movendo mundos e fundos para calar e suprimir os meios de existência daqueles que, simplesmente, eles não gostam, logo, os candidatos ao cancelamento seriam um perigo para a democracia, para as instituições, para toda a humanidade, no entender deles.

Já repararam o quanto isso é um trem soberbo? E, de repente, um sujeito anódino entra nas redes sociais, junta-se com uma legião digital, todo “fevoso”, prontinho para avacalhar com a vida de alguém. Pior! Essa gente sente um tremendo prazer sádico em fazer isso. Alegram-se, crentes de que estão agindo feito bons cidadãos criticamente críticos.

Pois é. Os jovens da “Juventude Hitlerista”, nos anos trinta, sentiam-se mais ou menos assim quando eles depredavam um estabelecimento comercial judaico ou espancavam, em grupo, um judeu na rua. Naqueles idos, era o que se esperava de um “bom cidadão” nacional-socialista da Alemanha de Hitler.

Os jovens chineses, em meados dos anos 60 e 70 do século passado, durante a Revolução Cultural Chinesa, deveriam ter uma sensação similar quando derrubavam antigos monumentos, mudavam nomes de ruas e denunciavam seus vizinhos, amigos, conhecidos e, inclusive, quando entregavam seus pais e familiares para as autoridades do Partido Comunista, por considerarem que eles seriam supostos elementos contrarrevolucionários.

Nos dois casos, tanto no alemão nacional-socialista como no chinês marxista, todos os jovens e adultos envolvidos acreditavam, sinceramente, que estavam realizando algo sumamente bom, por isso, enchiam seus peitos de orgulho e ficavam envaidecidos com sua obra ignóbil.

E o mais irônico nisso tudo é que os canceladores dos dias modernosos em que vivemos, vivem falando de tolerância, de alteridade, de empatia, de blábláblá, ao mesmo tempo que, sem o menor pudor, saem rotulando qualquer um, que não caia em suas [des]graças, de machista, homofôbico, fanático religioso e tutti quanti; tudo conforme mandar a toada da manada digital.

Sim, isso mesmo, vaidade das vaidades, tudo é vaidade e, por essa razão, os cancelamentos do passado, citados acima, edificaram uma hedionda tragédia e, consequentemente, os cancelamentos de hoje, cedo ou tarde, acabarão chegando no mesmo destino porque, como a muito havia dito Charles Bukowski, o mundo inteiro é um tremendo saco de merda se rasgando sobre nossas costas.