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História: A morte do Padre Cícero, o santo patriarca, há 86 anos

20/07/2020
História: A morte do Padre Cícero, o santo patriarca, há 86 anos

O dia 20 de julho de 1934 foi o mais diferente da história da cidade de Juazeiro. Era de manhã quando toda a cidade de mais de 40 mil habitantes começou a agitar-se, correr, gritar e chorar: tinha morrido o padroeiro da cidade, o santo brasileiro, a mais carismática figura do clero nacional, o maior caudilho do Nordeste, acima de qualquer outro nome da região: o padre Cícero Romão Batista, aos 90 anos completos e mais alguns meses.

Padrinho dos humildes, eternamente entronizado no coração do sertanejo, somente os telegramas expedidos da cidade neste dia, chegaram a vários contos de reis, milhões de reais na moeda atual. Aviões do Exército fizeram vôos rasantes sobre sua casa em homenagem a ele e poucas horas à frente uma avalanche de mais de 20 mil romeiros de todas as partes afluíam à cidade. Ao longo desses 78 anos depois o seu nome só fez crescer assim como cresceu tudo em que tocou. O amor legítimo e absolutamente natural que, já agora o povo brasileiro lhe dedica, é uma das mais tocantes, sinceras e espontâneas homenagem que um povo já prestou a ídolo seu em qualquer época. Nessa reportagem da TRIBUNA DO SERTÃO, comemorativa dessa data, o leitor terá um depoimento exclusivo de uma testemunha ocular desse dia e dados da biografia do grande brasileiro.

É um relato emocionante do tumulto que, pouco depois, ocorreu na cidade, naquela distante manhã de 20 de julho de 1934. E aqui descrito por Lourival Marques, filho de um dos secretários particulares do Conselheiro e Santo do Sertão, e que republicamos, na íntegra, a seguir:

“Acordei pelo tropel de gente que corria pela rua. Fiquei sem saber a que atribuir aquelas carreiras insólitas. Quando cheguei à janela tive a impressão de que alguma coisa de monstruosa sucedia na cidade. Que espetáculo horroroso, esse de milhares de pessoas alucinadas, correndo pelas ruas afora, chorando, gritando, arrepelando-se… Foi então que se soube… O Padre Cícero falecera… Eu, sem ser fanático, senti uma vontade louca de chorar, de sair aos gritos, como toda aquela gente, em direção à casa desse homem, que não teve igual bondade e nem teve igual em ser caluniado. Um caudal de mais de 40 mil pessoas atropelava-se, esmagava-se na ânsia de chegar à casa do reverendo. O telégrafo transbordava de pessoas com telegramas, para expedição, destinados a todas as cidades do Brasil. Para fazer ideia, é bastante dizer que só em telegramas, calcula-se ter-se gasto alguns contos de reis. Logo que os telegramas mais próximos chegaram ao destino, uma verdadeira romaria de dezenas de caminhões superlotados, milhares e milhares de pessoas a pé, marcharam para aqui. Juazeiro viveu e está vivendo horas que nem Londres, nem Nova York viverão jamais… O povo, uma onda enorme, invadiu tudo, derrubando que se interpôs de permeio, quebrando portas, passando por cima de tudo. Pediu-se reforço à polícia, mas o delegado recusou, alegando que o Padre era do povo e continuava a ser do povo.

Arranjaram no entanto, um meio de colocar o cadáver exposto na janela, a uma altura que ninguém pudesse alcançar e, durante todo o dia, várias pessoas encarregam-se de tocar com galhos de mato, rosários, medalhas e outros objetos religiosos, no corpo, a fim de serem guardados como relíquias. Milhares de pessoas continuavam a chegar de todos os pontos, a pé, a cavalo, de automóvel, caminhão, de todas as formas possíveis.
Quatro horas da tarde… Surge no céu o primeiro avião do exército. Depois o outro. Lançam-se de ponta para baixo, em vôos arriscadíssimos, passando a dois metros do telhado da casa do Padre Velho. Duram muito tempo os vôos. É a homenagem sentida que os aviadores prestam ao grande vulto brasileiro que cai… Desceram depois no nosso campo, vindo pessoalmente trazer uma riquíssima coroa, em nome da aviação militar.

A cidade é uma colmeia imensa; colmeia de 60 mil almas, aumentada por mais de 20 mil, que chegaram de fora. Nenhuma casa de comércio, de gênero algum, barbearias, cafés, bares, nada abriu. A prefeitura decretou luto oficial por três dias. O mesmo imitaram as cidades do Crato, Barbalha e outras. Todas as sociedades e sindicatos têm o pavilhão nacional hasteado a meio-pau com uma faixa negra, em funeral.

Durante toda a noite de 20 de julho e na manhã do dia seguinte, milhares de fiéis desfilaram diante do corpo, mantido de pé atrás da janela da residência daquele que fizera milagres. A certa altura, o braço do cadáver balançou, desprendendo-se da atadura, e um grito se ouviu “Padre Cícero está vivo; ele ressuscitou dos mortos”. Os padres da cidade marcharam, com rapidez, para desfazer o engano dos crentes; temendo o pânico, garantiram aos que pranteavam o morto que o Patriarca não estava vivo. Antes dessa ocorrência, os médicos assistentes tinham deixado a cena pelo quintal e beco dos fundos, como uma medida de precaução contra o esperado revide do povo.

Então, nas primeiras horas do dia 21, o caixão do Patriarca estava pronto para levá-lo na última viagem à Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro onde sua mãe, uma irmã e Maria de Araújo já descansavam. 60 mil pessoas e quase uma dúzia de padres provenientes das cidades do Vale acompanharam o cortejo; decorreram 4 horas até os fiéis enlutados e os padres chegassem a seu destino, a apenas alguns quarteirões da casa do clérigo, hoje “Museu do Padre Cícero”. Ao meio dia, a missa solene foi entoada e a lousa de mármore baixou sobre a sepultura que havia sido cavada no santuário da capela, próximo ao altar.

O Patriarca morrera. Na mente de alguns dos mais importantes moradores e comerciantes da cidade, assim também Juazeiro. Os pessimistas começaram a cerrar as portas de suas lojas e a abandonar a cidade cujos verdes campos eles pensavam que iriam fenecer. Não há dúvida de que a estátua do clérigo em tamanho natural, erguida na Praça da Liberdade, em 1925, era um pobre substituto do Patriarca. Mas, não obstante os pessimistas, os romeiros continuaram a chegar. Na sua perene miséria, muitos acreditavam, e ainda acreditam, que o Padre Cícero voltará em breve! Enquanto aguardavam e graças ao seu labor, a outrora insignificante aldeia continuou a crescer. Sua população engloba na data em que escrevemos, cerca de mais de 80 mil almas. Floresce sua indústria algodoeira, suas escolas aumentam, novas fábricas são instaladas e até a hierarquia eclesiástica reconciliou-se com os “fanáticos” miseráveis, sobre os quais a justiça ainda está por luzir.

Com efeito, até que os pobres herdem a terra ou, melhor, até que os pobres exijam e obtenham o que de direito Ihes pertencem, Juazeiro – com a promissão passada e presente de um milagre – parece fadado a continuar sendo o pouso mais procurado do Nordeste brasileiro.