Brasil

Em meio a pandemia, medida provisória ameaça direito à informação

26/03/2020
Em meio a pandemia, medida provisória ameaça direito à informação
Mão digita em computador

Em vigor desde 2012, a Lei de Acesso à Informação estabelece prazo máximo de 30 dias úteis para respostas

No início desta semana, o governo Jair Bolsonaro, publicou uma medida provisória que muda regras da Lei de Acesso à informação, o que tem provocado acaloradas críticas de entidades de defesa ao direito à informação, jornalistas, políticos e acadêmicos.

Sob o argumento do atual momento de “enfrentamento da emergência de saúde pública”, diz a Medida Provisória (MP) 928, o presidente suspendeu “os prazos de resposta a pedidos de acesso à informação nos órgãos ou nas entidades da administração pública cujos servidores estejam sujeitos a regime de quarentena, teletrabalho ou equivalentes”, se a pesquisa depender de acesso físico a departamentos ou o agente público estiver “prioritariamente envolvido com as medidas de enfrentamento” da emergência.

A medida ainda prevê suspensão dos pedidos de recurso contra negativas de resposta. E determina que a prioridade no atendimento será para solicitações relacionadas ao combate à pandemia de covid-19.

Apesar de considerarem a argumentação válida, entidades acreditam que a MP pode ser utilizada para deixar sem resposta os cerca de 4 mil pedidos pendentes na esfera federal – e limitar o acesso a informações importantes neste cenário de emergência.

Em nota de repúdio, 68 organizações pedem a revogação da lei presidencial, argumentando que “o texto é contraditório e abre brecha para omissões indevidas a pedidos de informação” e que “não venceremos a pandemia sem transparência”.

“A Medida Provisória causa surpresa e confusão, porque a Lei de Acesso à Informação e os regulamentos relacionados a ela já preveem situações nas quais os órgãos públicos estão desobrigados de responder aos pedidos”, afirma à DW Brasil o jornalista Marcelo Träsel, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). “O governo afirma que o objetivo é proteger os servidores de eventuais punições, mas seria bastante simples justificar as negativas com base nos mecanismos já existentes.”

No Twitter, o senador Randolfe Rodrigues (REDE) foi um dos políticos que se manifestaram contra a MP. “Bolsonaro – de novo – tenta utilizar a crise para implementar sua política autoritária”, escreveu ele, que é líder da oposição. “Atacar a Lei de Acesso à Informação em um momento como esse é desprezível. Por que o presidente não usa seu tempo para ajudar o povo? Estou acionando o STF contra esse absurdo!”

“A atualidade da informação, que é essencial no jornalismo, depende de dados registrados por instituições respeitadas pelos critérios que adotam, reconhecidas por sua independência”, comenta à DW Brasil o professor de jornalismo Angelo Sottovia Aranha, da Universidade Estadual Paulista.

“Limitar o acesso aos bancos de dados referentes às atividades dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, aos registros feitos a partir do que realmente aconteceu, a informações resultantes de pesquisas criteriosamente realizadas, inviabiliza a prática do jornalismo comprometido com o aprimoramento da cidadania, com a formação do espírito crítico necessário para que os cidadãos tenham subsídios para determinarem seus destinos democraticamente.”

Direito constitucional

Em vigor desde maio de 2012, a Lei de Acesso à Informação regulamenta os mecanismos de transparência passiva e ativa dos órgãos públicos brasileiros. Por meio dela, todo cidadão tem acesso facilitado a informações que julgar úteis ou relevantes, salvo raras exceções previstas, em um prazo máximo de 30 dias úteis do pedido. Desde que foi implementada, a legislação se tornou um recurso muito utilizado para a prática do jornalismo.

Professor da FGV-Direito, o jurista Carlos Ari Sundfeld esclarece à DW Brasil que a Lei de Acesso à Informação foi criada para atender a um princípio da Constituição. “O direito de acesso à informação não foi criado pela lei. Foi criado pela Constituição”, enfatiza. “A lei apenas procura viabilizar em termos práticos, definindo competências e meios, o cumprimento de um dever constitucional de informação. A Constituição brasileira garante direitos individuais, entre os quais o acesso à informação. E nenhum ato do presidente da República pode impedir esse direito.”

Sundfeld avalia que a MP traz argumentos bastante razoáveis frente ao cenário de combate à epidemia, tanto no sentido de priorizar os pedidos referentes ao assunto quanto nas justificativas de suspender os atendimentos quando da impossibilidade física dos mesmos.

“Acontece que grande parte dos dados da administração pública hoje são disponíveis online e podem ser fornecidos pelo agente público incumbido de abrir e prestar informação, apenas usando o acesso que ele tem aos arquivos digitais”, comenta o jurista. “Então é importante dizer que a MP não suspendeu o dever de os órgãos públicos prestarem informações.”

“Tenho a impressão de que parte das reações contrárias tem a ver com outro problema: o receio de que a administração pública passe a negar acesso à informação e desprezar pedidos de acesso sem que exista a situação excepcional prevista pela MP. E que um eventual pedido de recurso por negativa ou por omissão não seja examinado, porque a MP diz que ‘não serão conhecidos recursos’”, complementa ele.

“Trata-se de uma preocupação legítima. A MP pode vir a se tornar um canal para abusos da administração. Se isso ocorrer, existem consequências. A primeira é que a Justiça continua funcionando e deve determinar a correção da ilegalidade. Se isso ocorrer, exporá o agente público que cometer isso a uma ação de improbidade. Basta acionar o Ministério Público”, afirma.

Sundfeld enfatiza que a MP “não é razão para se negar informação”. “Seria equivocado”, define.

Träsel, por sua vez, afirma que a Abraji vai manter os olhos abertos para os abusos inevitáveis que a Medida Provisória pode gerar, “uma vez que ela na prática permite aos órgãos públicos negar pedidos de informação sem apresentar nenhuma justificativa”.

“É o momento não só de a Abraji ou de os jornalistas, mas de toda a sociedade brasileira fiscalizar a aplicação da Lei de Acesso à Informação, que é um patrimônio do cidadão brasileiro”, comenta. “Apesar da MP afirmar que recursos não serão respondidos, orientamos os cidadãos a submeterem recursos mesmo assim e, quando a vigência da medida de exceção terminar, se for caso, reiterar o pedido de acesso à informação ou o recurso. Além disso, convidamos todos a denunciarem os abusos à Abraji e ao Ministério Público.”

Bom senso

Diretor da organização Transparência Brasil, o cientista político e economista Manoel Galdino afirma que está “acompanhando e monitorando os desdobramentos”. “A MP é confusa e contraditória”, avalia. “No momento em que os países que têm mais sucesso no combate à epidemia apostam na transparência para informar a população e ajudá-la a tomar boas decisões, o governo brasileiro prefere não dar transparência.”

Galdino pede à população o bom senso que o momento exige. “Que as pessoas tenham um pouco de consciência sobre a necessidade de fazer pedidos de acesso à informação, já que neste período crítico é preciso concentrar naquilo que é importante mesmo”, diz.

“Por outro lado, seria importante especificar regras mínimas, padrões mínimos de dados que o governo deveria disponibilizar sobre a epidemia. Se o governo colocasse uma obrigação de dados abertos sobre o assunto, diminuiriam os boatos, as fake news, as suspeitas de informações escondidas. E a população teria confiança, e isso ajudaria o país a enfrentar essa crise”, considera.

A Fiquem Sabendo, agência especializada em Lei de Acesso à Informação, demonstra preocupação com o cenário. Em nota enviada à DW Brasil, a organização avalia que a MP foi “editada sem consulta à entidades da sociedade civil que atuam na área” e “vem em um momento ruim, no qual o acesso à informação precisa ser fortalecido”. “Estamos iniciando um acompanhamento específico sobre o assunto”, diz o texto. A agência afirma que até esta quarta-feira compilou quatro negativas baseadas na MP.