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De União dos Palmares: o mundo de barro da artesã Dona Irinéia

17/04/2017
De União dos Palmares: o mundo de barro da artesã Dona Irinéia
Quarenta mestres da cultura popular fazem parte do Registro do Patrimônio Vivo; dona Irinéia é um deles e começou no seu ofício ao ajudar a mãe a moldar panelas de barro para colaborar no sustento da família. André Palmeira

Quarenta mestres da cultura popular fazem parte do Registro do Patrimônio Vivo; dona Irinéia é um deles e começou no seu ofício ao ajudar a mãe a moldar panelas de barro para colaborar no sustento da família. André Palmeira

É no simbólico povoado do Muquém, comunidade de descendentes quilombolas, localizada no município de União dos Palmares, onde são criadas obras de grande e expressivo valor artístico. Nas mãos de Irinéia Rosa Nunes da Silva, a Dona Irinéia, 68 anos, o barro avermelhado vira cabeças, vasos, panelas e se transformam em histórias de lutas e conquistas dos moradores dos Quilombos dos Palmares.

Mestra artesã do Patrimônio Vivo de Alagoas, desde 2005, Dona Irinéia é considerada uma das maiores ceramistas do Estado. Os traços quilombolas de sua arte não negam a ancestralidade da artista, que usa apenas barro, lenha e talento para criar suas peças.

Aos vinte anos, Irinéia começou a ajudar sua mãe a moldar panelas de barro para colaborar no sustento da família. Mais tarde, iniciou a produção de peças para fiéis pagarem promessas, em Juazeiro, no Ceará. Para Dona Irinéia foram essas encomendas que fizeram sua “imaginação acontecer”, quando passou a moldar o barro com mais criatividade. “Depois que eu descobri minha arte acabou meu sofrimento”, disse.

Ao lado de seu marido, Antonio Nunes, o Toinho, ela encontrou novas possibilidades para o trabalho com o barro. Os vasos e panelas passaram a ser substituídos pelas famosas esculturas, hoje conhecidas em todo país e até internacionalmente.
“Ele também mexia com barro quando era jovem. O pai de Toinho fazia telha e ele ajudava no acabamento. Depois que a gente se casou ele começou a ir buscar barro ali no barreiro e a gente começou a fazer algumas coisas além de panela e jarro. É que o povo encomendava mão de barro, cabeça e outras partes do corpo pra poder pagar promessa. E a gente fazia tudo”, explicou a artesã.

A fabricação de artefatos de cerâmica reflete um modo de fazer tradicional da comunidade que produz e vende essas louças utilitárias há gerações. Dona Irinéia é mãe de 11 filhos. Os filhos e uma cunhada também ajudam na produção das peças. Em virtude das dificuldades físicas próprias da idade, a ceramista repassou algumas técnicas de produção para os familiares que auxiliam com a confecção da conchinha e do nariz, enquanto D. Irinéia molda as demais partes das obras.

O processo para o trato com a matéria-prima é feito de forma totalmente artesanal: retiram o barro dos barreiros, pisoteiam, amassam, moldam e queimam as peças que, sem nenhum tipo de pintura, ganham uma coloração avermelhada natural.

Os objetos criados são bastante peculiares, frutos das memórias e vivências de Dona irinéia. As cabeças negras são as que têm mais encomenda, “o pessoal gosta de botar nas piscinas, em pousadas”, observa Irinéia. As cabeças negras que trazem lábios, nariz, olhos, orelhas e cabelos delineados de forma sensível e expressiva. As peças são produzidas de diversos tamanhos, ornamentações e penteados. A pequena escultura com pessoas em cima de uma jaqueira se tornou um clássico, devido ao seu valor histórico. Em 2010, palmarinos do Muquém enfrentaram uma enchente do rio Mundaú e tiveram que subir na árvore para sobreviver. Mônica, filha da artesã, foi uma das pessoas salvas graças aos galhos da árvore redentora.

Em 2004, Dona Irinéia foi finalista do Prêmio Unesco de Artesanato da América Latina e Caribe. Em seu ateliê, nos fundos de casa, a artesã conta que envia as peças para São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Recife. Em 2015 esculturas da artesã foram levadas para Itália, a convite da Expo Milão, uma feira que reúne obras de arte de 140 países.

Em 2013, Dona Irinéia Nunes virou personagem do livro A menina de barro, da escritora Gianinna Bernardes, com ilustrações do alagoano Pablo Perez Sanches. A obra conta a história de uma família que morava às margens do rio Mundaú, no interior de Alagoas, e vivia a partir da criação de objetos feitos do barro colhido na beira do rio. Certo dia, a chuva foi tanta que fez o rio transbordar, carregando tudo que havia pela frente. Para se salvar, a família teve que deixar quase tudo para trás, inclusive as peças de barro feitas com tanto amor. Durante a enchente, o ateliê de D. Irinéia ficou debaixo de água, e cerca de duas mil peças de cerâmica se perderam na enxurrada.

Dona Irinéia carrega com orgulho o reconhecimento da arte que aprendeu com sua mãe, que vai além das fronteiras da comunidade isolada de quilombola. Ela usa sua multiplicidade de talentos para dar vida ao barro. É através dele e a partir de seu saber popular que modela sua própria identidade, projetando a imagem de seu povo no mundo. É do barro, da argila, da terra molhada com água que a arte e a criatividade de dona Irinéia vão se espalhando e ganhando o mundo. “Quando estou longe do barro não estou feliz. Ele é minha vida”.

Registro do Patrimônio Vivo

É considerada Patrimônio Vivo de Alagoas a pessoa que detenha os conhecimentos e técnicas necessárias para a preservação dos aspectos da cultura tradicional ou popular de uma comunidade.

Os mestres devem ter os trabalhos estabelecidos no estado há mais de 20 anos, repassando às novas gerações os saberes relacionados a danças e folguedos, literatura oral e/ou escrita, gastronomia, música, teatro, artesanato, dentre outras práticas da cultura popular que vivenciam.

Atualmente, quarenta mestres da cultura popular alagoana fazem parte do Registro do Patrimônio Vivo. O RPV foi estabelecido através da Lei Estadual nº 6.513/04, posteriormente alterada pela Lei nº 7.172/10. Os contemplados recebem, mensalmente, uma bolsa no valor de um salário mínimo e meio, concedida pelo Governo de Alagoas, através da Secretaria de Estado da Cultura.