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Há 140 anos o município de Pilar executava a última pena de morte do Brasil

04/04/2016
Há 140 anos o município de Pilar executava a última pena de morte do Brasil
Na execução, algoz subia nos ombros do condenado para acelerar morte (Foto: Arquivo/Agência Senado)

Na execução, algoz subia nos ombros do condenado para acelerar morte (Foto: Arquivo/Agência Senado)

 

A pacata cidade de Pilar, na província de Alagoas, amanheceu tumultuada em 28 de abril de 1876. Calcula-se em 2 mil o público de curiosos, inclusive vindos das vilas vizinhas, que se aglomerou para assistir à execução do negro Francisco.

O escravo fora condenado à forca por matar a pauladas e punhaladas um dos homens mais respeitados de Pilar e sua mulher. O assassino recorreu ao imperador dom Pedro II, rogando que a pena capital fosse comutada por uma punição mais branda, como a prisão perpétua. O monarca, poucos dias antes de partir para uma temporada fora do Brasil, assinou o despacho: não haveria clemência imperial.

Acorrentado ao carrasco e com a corda já no pescoço, Francisco percorreu as ruelas da cidade num cortejo funesto até o ponto em que a forca estava armada. Na plateia havia escravos, levados por seus senhores para que o caso lhes servisse de exemplo.

— Peço perdão a todos, e a todos perdoo — disse ele, antes de morrer, à multidão atônita.

 

Há exatos 140 anos, essa foi a última pena capital executada no Brasil. Depois de Francisco, nenhum criminoso perdeu a vida por ordem judicial. Encerrava uma prática que vinha desde o Descobrimento — basta pensar no índio que o governador-geral Tomé de Souza mandou explodir à boca de um canhão em 1549 ou em Tiradentes, enforcado e esquartejado em 1792, ou ainda no frei Caneca, fuzilado em 1825.

Galés perpétuas

Francisco, porém, foi condenado com base numa lei de 1835 que mirava exclusivamente os negros cativos. Ela dizia que seria condenado à morte o escravo que matasse ou ferisse gravemente seu senhor ou qualquer membro da família dele.

Talvez essa tenha sido a lei mais violenta e implacável de toda a história brasileira. A norma não admitia a hipótese de o criminoso continuar vivo — pelas leis anteriores, havendo atenuantes, ele poderia ser condenado à prisão ou a galés perpétuas (trabalhos forçados para o governo), no lugar do enforcamento.

Além disso, a lei de 1835 exigia o voto de apenas dois terços dos jurados do tribunal para a condenação à forca — até então, a pena capital requeria a unanimidade do júri. E, por fim, ela não permitia apelações pela mudança da pena — antes, o condenado podia interpor inúmeros recursos judiciais às instâncias superiores.

O historiador Ricardo Figueiredo Pirola, autor de Senzala insurgente (Editora Unicamp), diz:

— Havia pena de morte para os livres que cometiam homicídio, mas para eles a legislação continuou como antes, com alternativas à forca. O endurecimento afetou só os cativos. De 1835 em diante, escravo condenado era escravo enforcado: “lance-se logo a corda e pendure-se o réu”.

Documentos históricos mantidos sob a guarda do Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que o projeto da lei de 1835 foi proposto pela Regência como forma de conter as crescentes rebeliões escravas. A Regência foi o governo-tampão da conturbada década de 1830, entre a abdicação de Pedro I e a maioridade de Pedro II.

“As circunstâncias do Império em relação aos escravos africanos merecem do corpo legislativo a mais séria atenção. Alguns atentados recentemente cometidos contra fazendeiros convencem dessa verdade”, escreveu o ministro da Justiça no preâmbulo do projeto, remetido à Câmara e ao Senado em 1833. “A punição de tais atentados precisa ser rápida e exemplar.”

Os “atentados recentemente cometidos” a que o ministro se refere ocorreram nas províncias da Bahia, de São Paulo e de Minas Gerais, onde escravos atacaram seus senhores por não mais aceitarem castigos violentos e trabalhos extenuantes ou por serem vendidos para outros pontos do país, sendo separados da família, por exemplo.

O caso mais rumoroso ocorreu em São Tomé das Letras, no sul de Minas Gerais, em 1833, e ficou conhecido como Revolta de Carrancas. Escravos fizeram uma espécie de arrastão pelas fazendas da região, matando famílias inteiras de latifundiários.

Terror

Episódios desse tipo deixavam a elite rural aterrorizada. Havia o temor de que se produzisse algo semelhante à Revolução Haitiana, onde os negros haviam se revoltado, assumido o poder e abolido a escravidão.

A elite não teve dificuldades para ver o projeto contra os negros prosperar. Primeiro, porque a lavoura era o grande motor da economia, e o Império tinha total interesse em protegê-la. Depois, porque os próprios políticos, na maioria, eram escravocratas.

Entre as vítimas de Carrancas, estavam parentes do deputado Gabriel Francisco Junqueira (MG), que só escapou da matança porque se encontrava na Câmara, no Rio, não em sua fazenda. Um dos regentes da Regência Trina Permanente (1831- 1834) foi José da Costa Carvalho, dono de vastas terras e dezenas de escravos em São Paulo.

Também os senadores tinham escravos. Da tribuna do Palácio Conde dos Arcos, a sede do Senado, o senador Silveira da Mota (GO) defendeu a lei de 1835 narrando um incidente familiar:

— Chegando ontem a minha casa, minha família recorreu a mim, assustada por um fato que tinha se dado no meu lar doméstico. Um escravo meu, apenas mui brandamente advertido, insubordinou-se a ponto de, armado, ameaçar minha mulher. Felizmente, minha filha mais velha teve o bom senso de conter a indignação que o fato tinha excitado e de apelar somente para minha chegada. É um crioulo de casa, que é muito bem tratado e há poucos dias tinha recebido dinheiro de minhas mãos.

Foi a trágica Revolta de Carrancas que apressou a elaboração do projeto da severa lei de 1835. A insurreição se deu em maio de 1833 e logo no mês seguinte a Regência apresentou a proposta. A aprovação ocorreu sem sobressaltos. O texto passou duas vezes pela Câmara e uma pelo Senado, sofrendo alterações mínimas.

Entretanto, muito pouco se sabe sobre o teor das discussões no Senado. Em 1834, o senador Marquês de Caravelas (BA) apresentou um requerimento para que o debate fosse secreto, por ser “pouco político” tratar em público de um tema tão delicado. Um dos documentos da época guardados no Arquivo do Senado explica que, “apesar da oposição de alguns ilustres senadores”, o pedido foi aceito.

Um grande levante negro na Bahia acelerou a aprovação definitiva do projeto. Foi a Revolta dos Malês, em Salvador. O saldo dos embates entre cativos e soldados foi de dezenas de mortes. A revolta explodiu em janeiro de 1835, a segunda aprovação da proposta na Câmara veio em maio e a sanção da Regência ocorreu em junho.

Manobra imperial

 

Nas duas primeiras décadas, a lei de 1835 levou centenas de escravos rebeldes à forca. Aos poucos, porém, dom Pedro II foi afrouxando as condenações. Em 1854, ele decidiu que todo escravo condenado à punição capital ganharia o direito de apelar à clemência imperial, pedindo o perdão ou pelo menos a comutação da pena, assim como já ocorria com os brancos.

O monarca cada vez mais cedia às súplicas. A última execução de um homem livre ocorreu em 1861. Os escravos precisariam de mais tempo para se livrarem da pena capital. Francisco, o negro de Pilar, foi enforcado em 1876.

Apesar de os tribunais continuarem sentenciando a pena de morte até o fim do Império, em 1889, as forcas foram definitivamente aposentadas uma década antes. E isso aconteceu sem que se revogasse a lei de 1835, apenas com as repetidas clemências imperiais.

De acordo com o historiador Ricardo Alexandre Ferreira, autor do livro Senhores de poucos escravos (Editora Unesp), a manutenção da lei, mas sem sua execução, foi uma decisão calculada de dom Pedro II:

— O imperador era contrário à pena de morte, mas sabia que despertaria a ira das elites agrárias que lhe davam sustentação se abolisse oficialmente a lei que as protegia. Preferiu agir com cautela e manter a lei.

Há várias hipóteses para a aversão do imperador às execuções. Uma das mais plausíveis é que ele foi influenciado pelas ideias do escritor francês Victor Hugo, crítico ferrenho da escravidão e da pena de morte. Dom Pedro II foi recebido duas vezes em Paris pelo autor de O Corcunda de Notre-Dame naquela longa temporada no exterior iniciada logo após negar clemência ao escravo Francisco. De fato, depois dessa viagem, ninguém mais no Brasil foi para a forca.

Os escravocratas, cientes da manobra, passaram a reclamar publicamente, exigindo o cumprimento da lei. Os senadores diziam em tom de ironia que dom Pedro II estava sendo “filantrópico”.

— Quem poupa a vida de um grande malfeitor compromete a vida de muitos inocentes — afirmou o senador Ribeiro da Luz (MG) numa sessão plenária em 1879. — Não é possível que, por causa da filantropia, homens vivam inquietos pelos perigos que os cercam, sobressaltados de que a foice ou a enxada do escravo venha tirar-lhes a vida.

Linchamentos

Na mesma sessão, os senadores lembraram um crime coletivo ocorrido em Itu, em São Paulo, no começo do ano. Um escravo havia assassinado seu senhor, um dos poucos médicos da cidade. Enfurecidas, centenas de pessoas tentaram invadir a delegacia para linchar o criminoso, mas foram contidas pela polícia. No dia seguinte, voltaram e conseguiram arrancar o escravo da cela. O negro foi morto a pauladas pela população aos gritos de “viva a justiça do povo!”

Para os senadores, linchamentos como aquele, que se repetiam em outras cidades, eram um claro sinal de que a sociedade — vendo que os cativos, livres da pena de morte, se sentiam encorajados a assassinar — não tinha escolha senão fazer justiça com as próprias mãos.

O senador Silveira da Mota foi ainda mais longe e disse que, já que a lei de 1835 havia sido esquecida, o melhor seria acabar de vez com a escravidão:

— Nós sabemos que a escravidão é uma violência e uma injustiça, mas as violências se mantêm senão com outras violências. Se quereis fazer filantropia à custa da honra das famílias dos proprietários, então tomai a responsabilidade da emancipação [dos escravos]. Não o queirais fazer tortuosamente, com prejuízo de tantas vidas. Num país de escravidão, se o governo quer harmonizar a lei criminal com os princípios filosóficos, então o meio é outro, é acabar com a escravidão. Enquanto não acabar com ela, o meio é a lei de 1835.

Ainda em 1879, o presidente do Conselho de Ministros (cargo equivalente ao de primeiro- -ministro), Cansanção de Sinimbu, compareceu ao Senado para defender o imperador. Ele argumentou que dom Pedro II concedia a clemência não por bondade, mas por identificar falhas nos processos judiciais:

— Todos nós sabemos como têm lugar esses assassinatos. Acontecem em lugares solitários, na ausência de pessoas que possam testemunhar e, por conseguinte, na dificuldade de se constituírem provas positivas para se fazer um juízo sobre a criminalidade do réu.

O primeiro-ministro não contou toda a história. Quando o processo era perfeito, sem deixar dúvida de que o escravo matou seu senhor, o imperador simplesmente engavetava o pedido de clemência. Assim, em vez de ir para a forca, o negro continuava na prisão indefinidamente, à espera de uma palavra final do monarca que jamais viria.

A lei da pena de morte dos escravos deixou de fazer sentido em 1888, com a abolição da escravidão. Ela só foi oficialmente revogada em 1890, logo depois da Proclamação da República.