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Beccaria e a nova hegemonia discursiva

13/12/2013
Beccaria e a nova hegemonia discursiva

No plano político-discursivo e até mesmo no campo formal, a hegemonia do discurso dos princípios coerentemente sugeridos por Beccaria tornou-se indiscutível. Seu livro Dos delitos e das penas retrata uma série de princípios e ideias tendencialmente organizadoras de setores relevantes da vida política em sociedade, que deram origem ou incentivaram (juntamente com toda doutrina iluminista) as noções de Estado de direito liberal fundado na legalidade, democracia (leis aprovadas pelo Legislativo), direitos humanos e sistema persecutório dotado de garantias limitadoras da intervenção punitiva do Estado.
Essa hegemonia discursiva (que é incontestável) conta com uma longa história: Renascentismo (século XIV-XVI), obras críticas como as de Friedrich Spee (1631) e Beccaria (1764), Iluminismo (século XVIII), Revolução norte-americana (1776), Revolução francesa (1789), Estado de direito legalista (liberal), movimentos constitucionalistas depois da Segunda Guerra mundial, internacionalismo e universalismo normativo (sendo o TPI a culminância desse último processo evolutivo cosmopolita); no campo político criminal, a continuidade desse discurso reside também no minimalismo/garantista (estruturado nos anos 70/80), precisamente na época em que recrudescia o poder punitivo, por meio do discurso penal neopunitivista.
Dos anos 70/80 para cá, no mundo ocidental, a hegemonia não é do discurso dos princípios, sim, a do discurso neopunitivista norte-americano. A consagração formal dos princípios garantistas do indivíduo frente ao poder punitivo estatal, como fruto dessa hegemonia discursiva, se tornou uma realidade. Mas uma coisa é o plano discursivo (filosófico) e formal (normativo), outra distinta é a realidade, sobretudo a forjada pela doutrina neopunitivista. Considerando-se que esses princípios nada mais representam que desdobramentos da doutrina dos direitos humanos, não há como deixar de reconhecer a distância entre eles e a realidade para grande parcela da população mundial.
Na época de Beccaria e do Iluminismo (século XVIII) a luta contra-hegemônica girava em torno do reconhecimento formal dos direitos das pessoas, de acordo com um novo modelo de Estado e de direito, que abrigasse as aspirações de estabilidade e previsibilidade nas relações de poder. No século XXI o problema não reside nesse reconhecimento formal (praticamente todos os direitos estão consagrados nas leis, nas constituições e nos tratados internacionais), sim, na concretização material desses princípios e regras, que norteiam apenas algumas relações de poder (Estado e classes dominantes ou influentes ou preponderantes), apresentando um incomensurável déficit em relação à grande maioria da população, que vive em verdadeiro estado de exclusão ou de anomia (ausência da efetividade das regras).