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Lei sancionada na Califórnia poderá mudar o modelo esportivo dos Estados Unidos

30/10/2019

O sistema esportivo norte-americano é considerado um exemplo mundial. A possibilidade dada às pessoas de conseguirem educação de qualidade por conta das suas habilidades atléticas é um paradigma que vários países, incluindo o Brasil, tentam emular sem sucesso. Os Estados Unidos se tornaram uma grande potência esportiva muito por conta deste modelo que teve poucas modificações desde sua criação no início do século 20, mas uma lei aprovada na Califórnia no fim de setembro promete transformações profundas nos próximos anos.

Sancionada pelo governador democrata Gavin Newsom e com muito apoio de LeBron James, a lei SB-206, apelidada de Fair Pay to Play Act (Lei do Pagamento Justo para Jogar, em tradução livre), muda as diretrizes das universidades no estado norte-americano e dá a permissão aos atletas de fecharem acordos de patrocínio, lucrarem com seu próprio nome e imagem e contratar empresários para cuidarem deus seus negócios.

No modelo atual, os atletas universitários são considerados amadores e, tirando a bolsa de estudos, não recebem compensação pelo seu trabalho. A visão que a Associação Atlética Universitária Nacional (NCAA, em inglês), entidade que agrega as universidades, tenta passar é a de que eles são estudantes que praticam esportes nas horas vagas. Um especialista consultado pela reportagem do Estado afirma que no início era assim, mas hoje a situação evoluiu para um ponto em que há pouca diferença entre os universitários e os profissionais.

“Sempre foi interesse da NCAA manter os esportes universitários como amadores, separados dos profissionais, e esse sistema atualmente está sob questionamento”, explica Andrew Brandt, diretor do curso de direito desportivo da Universidade de Villanova, na Filadélfia, e ex-executivo do Green Bay Packers na NFL, a liga de futebol americano dos EUA. “O conceito de amadorismo mudou no momento em que as universidades começaram a ganhar milhões de dólares.”

No futebol americano e no basquete, os dois esportes mais populares nos Estados Unidos, as universidades têm receitas anuais na casa dos bilhões por conta de contratos televisivos, venda de ingressos e de vestuário. Levantamento feito pela revista Forbes neste ano aponta que as 25 universidades mais valiosas do futebol americano têm, em média, receita de 2,7 bilhões de dólares (cerca de R$ 10,7 bilhões) com o esporte. No basquete, a média das 25 universidades mais valiosas é de US$ 52 milhões (aproximadamente R$ 207,9 milhões) em receitas.

“Os jogadores e fãs começaram a perceber que há uma “discrepância entre o que as universidades faturam com o esporte e a compensação que os jogadores recebem”, diz Brandt. Os valores das bolsas pagas aos atletas varia de acordo com a universidade, mas não garante a subsistência dos jogadores, principalmente os que saem de classes socioeconômicas mais baixas, uma vez que os gastos nas universidades são elevados.

“Do dinheiro que Tulane me pagava mensalmente, não sobrava muita coisa”, diz Cairo Santos, brasileiro que estudou na Universidade de Tulane, em Nova Orleans, e foi escolhido como o melhor kicker do futebol americano universitário em 2012. “Não queria que meus pais continuassem a me ajudar financeiramente depois do colegial porque tinha sido caro bancar os três anos que fiz de intercâmbio.”

O jogador explica que fazia bicos como árbitro de jogos de futebol americano dentro de Tulane para complementar sua renda, mas soube de histórias dramáticas de colegas na universidade. “Colegas de time vendiam drogas para conseguir um dinheiro extra porque suas famílias não podiam ajudar tanto.”

E as regras draconianas impostas aos jogadores fazem com que até mesmo aceitar um almoço de graça no campus possa ser caracterizado como violação e venha custar a perda de sua bolsa de estudos. “Os jogadores são instruídos com detalhe sobre o que pode e não pode fazer para que nossa elegibilidade se mantenha”, diz Santos. “Todo mundo achava um absurdo.”

A lei aprovada na Califórnia vai entrar em vigor somente em 2023, dando um prazo de quatro anos para as universidades se adaptarem à nova realidade. Andrew Brandt acredita que a norma ainda será alvo de questionamentos na Justiça norte-americana e diz que a própria NCAA deve tentar afrouxar suas regras para conter a opinião pública.

Na última terça-feira, a liga universitária anunciou que vai permitir o pagamento de direitos de nome e imagem a jogadores universitários, mas não deu maiores detalhes de como será feito esse procedimento ou quando ele se iniciará. Para Brandt, essa é uma forma de a NCAA de ganhar tempo. “O objetivo deles é trabalhar melhor essa ideia e ao mesmo tempo tirar a pressão da opinião pública.”

No momento em que sancionou a lei, o governador da Califórnia disse que o propósito não é somente fazer justiça social para os jogadores universitários, mas também incentivar outros Estados a criarem legislações semelhantes. “Esperamos que essa discussão se expanda para outros estados e que isso crie uma onda irreversível em que a NCAA não consiga se esconder”, contou Newsom em vídeo divulgado nas redes sociais.

MUDANÇA PODE AJUDAR BRASILEIROS – Em 2018, aproximadamente três mil adolescentes aproveitaram suas habilidades esportivas e conseguiram bolsa de estudos para fora do Brasil, 20% a mais do que no ano anterior. Segundo Maura Leão, presidente da Belta (Associação de Agências de Intercâmbio do Brasil), que elaborou o estudo, a nova lei da Califórnia pode aumentar o interesse de brasileiros que querem jogar nos Estados Unidos.

“Tende a aumentar o número de brasileiros na realização de intercâmbios esportivos para a Califórnia diante dessa nova lei”, diz Maura. “Os atletas universitários não serão punidos ao receberem aporte dos patrocinadores.” Para a executiva, a tendência é aumentar a procura nos próximos anos por esse intercâmbio.

Clayton Lovett, fundador da CS Educacional, empresa especializada em intercâmbios esportivos, concorda que o interesse dos brasileiros vai aumentar, mas ainda falta um entendimento melhor das regras da NCAA. “Uma das maiores surpresas de famílias que nos procuram é quando falamos que os atletas não recebem nada jogando lá”, explica Lovett. “A possibilidade de um atleta lucrar com sua própria imagem, conseguir criar um perfil legal nas redes sociais, um canal no YouTube, e isso não ser mais uma violação nas regras da NCAA, simplifica bastante as coisas”, avalia.

Lovett diz que desde a aprovação da lei na Califórnia algumas pessoas já buscaram sua empresa para saber mais detalhes, mas se decepcionaram quando descobriram que a lei só entrará em vigor em 2023 nos Estados Unidos.

Autor: Felipe Laurence, especial para a AE
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