Variedades

Gal Costa lança ‘A Pele do Futuro ao Vivo’ com clássicos, novidades e surpresas

15/09/2019

A Pele do Futuro é o título do mais recente disco de Gal Costa, lançado no ano passado. Dá nome também a seu show e ao registro ao vivo dele, que chegou às plataformas digitais na sexta-feira, 13. No entanto, o espetáculo da cantora baiana, uma das grandes vozes da música brasileira, diz muito mais sobre seu presente e seu passado. O roteiro do show, idealizado e dirigido por Marcus Preto, cria conexões precisas e, muitas vezes, surpreendentes entre antigos clássicos da artista, canções do novo trabalho e músicas até então inéditas na sua interpretação. Após ser fisgado por esse repertório, o público se deixa levar por esse caminho em que o novo e o antigo se confundem.

Pensado em três blocos, o show é aberto com canções escritas no período da ditadura, de onde saem grandes momentos, como Vaca Profana (com citação de Rolling Stones), de Caetano, e London, London, composta por ele no exílio em Londres – e que Gal não cantava havia muito tempo. No bloco seguinte, o de amor e desamor, estão músicas que ela nunca tinha cantado, como Motor, de Teago Oliveira, vocalista do Maglore, e O Que É Que Há, de Fábio Jr. e Sérgio Sá, em viscerais interpretações. De caso pensado, a última parte do show é a dos temas dançantes, incluindo Sublime (Dani Black), uma das melhores faixas do novo disco, e um pot-pourri de frevos, como Balancê (João de Barro/ Alberto Ribeiro) e Massa Real (Caetano), que lava a alma das plateias. Gravado em março, em duas apresentações na Casa Natura Musical, em São Paulo, A Pele do Futuro ao Vivo registra todo esse clima do show de Gal na íntegra. O projeto também pode ser encontrado em edições luxuosas em DVD e CD duplo.

Temas políticos, amorosos e dançantes

Diretor artístico de A Pele do Futuro, o disco, Marcus Preto é também o responsável pela construção do roteiro do novo show de Gal Costa – em diálogo com a cantora. Marcus gosta de instigá-la artisticamente com novidades – ou com bem-vindos resgates tirados de sua obra. Nessa troca, Gal contou a ele, por exemplo, sobre seu desejo de ter “uma coisa dançante” no espetáculo. “Então, na hora de ir atrás das canções, eu falei que tinha que ter um bloco de músicas para dançar, e obviamente esse bloco tinha que ser no final, porque é a melhor hora para isso. Aí fiquei pensando em dividir esse roteiro em três partes”, conta ele.

Segundo Marcus, a apresentação precisava ter “um dedo na política também”. Surgiu, então, a ideia do primeiro bloco. “Teve espelho com o começo da carreira, com o tropicalismo, e imediatamente veio Mamãe Coragem, e London, London. Inclusive, tem uma parte inteira na letra que é diferente da versão que a gente aprendeu com o RPM, que tinha aprendido com Caetano, tem uma estrofe inteira ali que é da gravação dela. A gente manteve nessa versão nova”, diz.

As Curvas da Estrada de Santos, de Roberto e Erasmo Carlos, também foi ideia de Gal. “Porque ela tinha cantado lá atrás em algum show e nunca gravou. Fora que essa música também tem a ver com exílio. Roberto foi a Londres, mostrou essa música para Caetano, que teve uma crise de choro e, por causa disso, Roberto compôs Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos para ele”, relembra Marcus.

Já o meio do show traz um bloco amoroso, reflexo também da atmosfera que marca o disco A Pele do Futuro (que contou ainda com produção de Pupillo).

“E o final é isso: vamos dançar mesmo, começando com Chuva de Prata, que é uma das músicas que mais tocaram na minha infância”, continua ele. “Achei que tinha de ter Chuva de Prata, uma música bonita, uma letra legal, uma coisa mais abraçadinho para depois poder entrar a fase disco e os frevos, que são apoteóticos.”

Qual o desafio da construção desse repertório, em que há um diálogo contínuo entre passado e presente?

Essas canções que eu canto há muito tempo, que gravei no passado, como London, London e outras que estão no repertório, na verdade, atualmente eu as canto de uma forma nova e os arranjos são diferentes da gravação original. Então, de certa maneira, tem um frescor nelas. É um reencontro com essas canções. No momento, acho que é um pouco isso: revelar para as pessoas que têm informação sobre meu trabalho, mas não viram de perto aquilo, ao vivo, que têm idade mais nova que a minha. Tem muita garotada que vai aos meus shows. É um pouco para falar da minha história, da história do tropicalismo, da MPB. E também me dá muito prazer em fazer. Me alimenta fazer música, cantar. É uma coisa que me faz muito bem, e acho que isso é importante, eu continuar fazendo. Viajar ainda é prazeroso.

E como você e Marcus Preto chegaram a essa seleção?

A ideia é trazer o meu passado, que é rico, é muito emblemático para os jovens justamente – embora eles conheçam tudo, é impressionante. É uma garotada diferente da época em que cantei, que era tudo hippie. Hoje em dia a plateia tem cara de careta, mas são garotos legais.

Das surpresas do repertório do show, vale destacar Motor e O Que É Que Há, sucesso de Fábio Jr.

Eu nunca tinha gravado Fábio Jr. Gosto do Fábio como ator, como compositor, mas eu nunca tinha me ligado nas coisas que ele fazia muito, e Marcus me mostrou essa música. Até achei estranho, mas comecei a cantar e vi que ia bater bem. Cantei para experimentar e ela veio de uma maneira fácil.

É interessante você gostar do Fábio Jr. como compositor, mas nunca ter pensado em gravar, cantar música dele. Isso foi por causa do estilo de música dele?

Talvez o estilo. Não sei, mas nunca tinha pensado em gravar.

Você falou no show, antes de cantar a música, que tinha namorado com o Fábio. Isso foi anos 1970, não é?

Foi em 79, 80, não sei bem a época. Nem é bom dizer, porque Fábio é muito galinha, vai que ele estava casado (risos). Foi um namorico, eu fiquei com ele, como diz hoje em dia a garotada. Ele era galanzão e mulherengo à beça. Não sei se ainda é (risos).

Das canções clássicas na sua voz, algumas delas você não cantava fazia tempo em seus shows?

London, London, por exemplo, eu não cantava havia um tempão. O blues Lágrimas Negras, eu não cantava fazia muitos anos. Chuva de Prata também.

Chuva de Prata tocou muito. Então, foi proposital deixá-la um tempo quieta?

Na época em que elas se tornaram grandes sucessos, eu cantei muito, e depois que o tempo foi passando, comecei a deixá-las um pouco de lado. Por exemplo, Chuva de Prata é uma música… Engraçado que, quando minha mãe ouviu essa canção, me falou: Gracinha, essa música é muito diferente de tudo o que você canta. Porque é uma música mais popular, é melosa, então, ela destoa um pouco das coisas que eu gravei naquela época. Mas é uma música popular, como Um Dia de Domingo, fui muito criticada na época em que a gravei. As pessoas tinham birra com Sullivan e Massadas. Gravei aquela música, porque chamei o Tim Maia para gravar comigo. Eu tinha acabado de conhecer o Tim pessoalmente, sempre o admirei como cantor. Na verdade, eu estava trazendo para o meu repertório toda uma atmosfera e um mundo que eram do Tim Maia, e as pessoas não entenderam isso. Então, fui muito criticada nessa época. Aí, eu fazia outros trabalhos, e a imprensa dizia assim: ‘Ah, mas ela um dia gravou Um Dia de Domingo’, como se fosse uma mácula, uma coisa maléfica (risos). É uma bobagem, isso foi desmistificado por Caetano. Ele próprio sugeriu para eu cantar Um Dia de Domingo imitando Tim Maia.

O show termina com um pot-pourri de frevos. Antes mesmo de Daniela Mercury e Ivete Sangalo, você já era a rainha do carnaval. Por que fechar o repertório com esses frevos?

Tem um pouco a ver com dance music. Tem toda uma atmosfera musical que tem uma conexão ali. Mas falando de frevo, quando eu era muito jovem, por exemplo, Massa Real, que é uma música do Caetano, gravei para o carnaval. Eu gravava os compactos duplos com músicas especialmente para o carnaval da Bahia. Eu gravava e a gente tocava lá. Então, essa música Massa Real foi feita para isso. Depois, ela entrou no disco (Fantasia), que fez muito sucesso. Quatro músicas entraram em parada.

Você participou de um disco dedicado à Mãe Carmen (filha de Mãe Menininha), com participação também de Gil, Ivete Sangalo, Daniela Mercury, entre outros. É um disco contra a intolerância?

Foi um disco feito no Rio, em Salvador, e a minha parte eu gravei em São Paulo, com Gil, uma música chamada Carmen, que não é cantada em iorubá, é cantada em português, é bem bonito o disco. Você conecta (o disco) à intolerância, por causa da perseguição que vem se fazendo ao candomblé. É uma maneira de defender a cultura negra, a religião negra, da qual eu faço parte. Sou do candomblé de dona Menininha do Gantois, grande mulher, linda, negra, sábia, para quem Caymmi dedicou uma música (Oração de Mãe Menininha), que eu gravei convidada por Bethânia no disco dela e que se tornou grande sucesso no Brasil. Então, é uma maneira de defender isso, sim, de assinar embaixo.

No final de semana passado, a imagem do beijo entre dois homens numa HQ causou polêmica na Bienal do Livro no Rio. O episódio foi apontado como censura. Qual sua sensação em relação a isso tudo?

Quando eu assisti pela televisão que o (prefeito Marcelo) Crivella tinha censurado o beijo de dois homens (no livro) na Bienal do Rio, que eu vi as pessoas falando que ele tinha permitido vender os livros num invólucro preto, me lembrei do (disco) Índia, porque com o Índia, que saiu nos anos 1970, foi assim. Meu disco tinha de ser vendido num invólucro preto, não tinha nada de mais. Tomei um susto, porque me veio essa lembrança, e aí achei uma coisa horrorosa, porque, com o governo federal que a gente tem hoje, a gente fica assustada com as declarações, com a maneira como as coisas são tratadas. A gente que viveu na época da ditadura tem medo que isso volte, está aí na atmosfera. Mas o povo brasileiro hoje está mais atento, tem mídias digitais, a gente sabe tudo o que está acontecendo na hora, e portanto a gente sabe que as pessoas se mobilizam em outros Estados. As instituições democráticas são mais consolidadas, fortes, a ditadura não vai se implantar. A gente tem que ficar atento, não pode deixar isso acontecer, e o papel dos artistas neste momento é fundamental. O Brasil, a duras custas, conseguiu implantar uma democracia, que é a maneira mais correta de se viver, é onde há o respeito pelo outro, o respeito às diferenças. Você tem que respeitar o outro do jeito que ele é, então o mundo tem que ser assim, a vida tem que ser assim. Você não tem que ser igual ao outro, o outro não é igual a você. Você tem que saber conviver com isso. Se você não se identifica, é uma coisa, mas respeitar é outra. Defendo os direitos humanos, acho que o governo tem que cuidar das pessoas pobres, tanta gente miserável neste país. Acho que é complicado o Brasil, mas a gente vai chegar lá um dia.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Autor: Adriana Del Ré
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