Variedades

Série ‘Pico da Neblina’, da HBO, inventa uma SP mais liberal

04/08/2019

As nuvens que sobrevoam o Brasil anunciam uma tempestade. Na favela onde moram os personagens Biriba e Salim, todas as casas estão com a TV ligada. Não é final do futebol. Naquela tarde, o Congresso Nacional votará a legalização do consumo de maconha. Com produção do cineasta Fernando Meirelles, a série brasileira original da HBO Pico da Neblina estreia neste domingo, 4, fazendo um grande exercício de futurologia, define o diretor Quico, filho do cineasta.

Ambientada em São Paulo, a produção narra a jornada de Biriba, um jovem traficante que decide abandonar a vida ilegal para comercializar a erva dentro dos termos da recente decisão. Seu parceiro nos trabalhos, Salim, vê a mudança no País como uma ameaça ao antigo monopólio do tráfico. Para ele, seguir em frente pode ser duas vezes mais perigoso, e mais emocionante. “Antes do roteiro, pesquisamos os modelos de comércio legal espalhados pelo mundo para entender que existem tipos como o do Uruguai, por exemplo, marcado pela mão forte do Estado, que é diferente dos EUA, em cujos Estados a regulamentação vem do movimento do mercado”, explica Quico.

Para que a trama funcionasse bem, Quico diz que ter dúvidas ajudou bastante a alimentar a história. No exemplo dos EUA, a lei federal impede qualquer comercialização ou posse da erva – mesmo assim, alguns Estados conseguiram, aos poucos, aprovar tanto o comércio de maconha medicinal quanto o uso recreativo. O caso do Uruguai é distinto, já que o governo prevê o controle e a fiscalização até mesmo da quantidade de pés cultivados pelos cidadãos. “O fato de poder imaginar como essa transformação afetaria o tráfico, a economia e as relações sociais lança novos desafios para os personagens”, completa o diretor.

Para desenhar essa São Paulo com a droga legalizada, o roteiro se aproxima de um mercado mais livre, que se autorregula, como nos EUA. “Apesar disso, o federalismo brasileiro é mais forte que o americano”, sugere o executivo da HBO Latin America, Roberto Rios. “Nesse caso, penso que o País iria implantar a nova política em todos os Estados. Essas variáveis acabam por nos colocar diante de um debate muito brasileiro. São discussões sobre raça, gênero, relações familiares, geracionais e violência.”

Enquanto o dedicado Biriba “faz o corre” para garantir a única renda que sustenta a mãe, a irmã e as sobrinhas, Salim vê a mudança como uma oportunidade para se fortalecer e comandar a lojinha – o ponto onde se vendem os entorpecentes. “Todo mundo é pego por essa transformação e, no início, Biriba não sabe como reagir”, conta o protagonista Luis Navarro. No primeiro dos dez episódios, o telespectador desavisado terá uma vista panorâmica sobre os termos, nomes e apelidos de cada produto. Saberá que a diferença entre um prensado e um verde interfere na viagem, mas também na manutenção dos territórios. O crime não vai deixar Biriba sair assim tranquilamente. “Ele percebe que, com os conhecimentos que possui, pode contribuir com a legalidade. Mesmo assim, há um pouco de medo e inexperiência, já que se trata de uma perspectiva inédita”, completa o ator.

Além de discordar do amigo, Salim lhe fará um convite. Com a futura promoção do traficante garantida, o antigo posto e a lojinha poderão ser ocupados por Biriba. “Vai demorar para o Salim entender a decisão do amigo, e isso vai ajudar a aumentar os conflitos”, conta o ator Henrique Santana.

Em casa, Biriba também não vai ter as melhores reações neste Brasil mais verde que amarelo. O investimento para um comércio legal é alto e sua mãe precisa do dinheiro entrando em casa todos os dias. Biriba vai buscar ajuda de uma figura mais que paulistana chamada Vini, filho de uma família rica e incapaz de viabilizar qualquer tipo de trabalho por conta própria. “Ele tem esse jeito de falar paulistano e acha que entende de startups. Sua experiência é a recente invenção de um aplicativo patético para fazer massagem com o uso do celular”, conta Daniel Furlan, o Renan, do canal Choque de Cultura.

Já o pai de Biriba, um famoso traficante da região, é como um fantasma irritante na vida do rapaz. “Ele evita encarar as fotos do pai que já está morto e não vê razão para que sua mãe ainda guarde as roupas do marido”, conta Navarro.

O mistério dessa relação familiar pode encontrar alguma explicação na descoberta que pedreiros fazem durante uma obra na casa. Como em um conto de suspense, os homens vão encontrar um estranho buraco no sótão. É mais um motivo para o patriarca voltar a ser o assunto da família.

Com episódios que vão ao ar aos domingos e exibidos para 70 países, Pico da Neblina também quer deixar a marca de uma produção audiovisual tão brasileira quanto paulista. “A história tem as cores de São Paulo. Quando alguém da Turquia assistir, vai perceber que não se trata de uma série que poderia ter sido gravada em Chicago, por exemplo”, define Quico.

O diretor adianta que, até o final do décimo episódio, não há qualquer promessa de um caminho de sorrisos para o protagonista. Navarro alerta que o público vai ver Biriba enfrentar algumas – muitas – dificuldades. Quico vai além. “Ele vai se dar bem até o fim da temporada. Posso dizer que apenas uma vez na série ele vai ter um momento feliz.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Autor: Leandro Nunes
Copyright © 2019 Estadão Conteúdo. Todos os direitos reservados.