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‘A esclerose múltipla se tornou minha amiga’

30/08/2019

Há pouco mais de dois anos, a bióloga Aline Beatriz Melo, de 25 anos, recebeu o diagnóstico de esclerose múltipla (EM). “Você vê um buraco se abrindo. Eu lembro que saí do consultório e soquei a parede”, conta. Naquele momento, todos os planos que ela tinha de conhecer o mundo, começar o doutorado, constituir família e ir bem no trabalho “voaram pela janela”.

O administrador de empresas Gustavo San Martin tinha 24 anos quando recebeu o mesmo diagnóstico. Ele estava indo bem no trabalho, embora dormisse quatro horas por noite e voltasse para casa com e-mails pendentes para responder. “Na época, eu namorava, sempre sonhei em ser pai. E eu era um cuidador de esclerose múltipla, minha sogra já convivia há 20 anos na época. No dia que eu levei a EM pra dentro de casa, minha mãe perguntou se eu ia morrer. Eu não sabia o que ia ser da minha vida e minha mãe me perguntou se eu ia morrer”, relembra.

Hoje, aos 42 anos, ele fundou a organização Amigos Múltiplos pela Esclerose (AME) em 2012, está a um mês de ter o primeiro filho nos braços e começou a fazer atividades que não imaginava. “Eu odiava correr, de repente eu passei a ser um dos caras mais rápidos do Estado de São Paulo. Eu corria e pegava pódio, o esclerosado correndo”, conta com bom humor.

Aline também leva uma vida normal com adaptações. Munida de informação e seguindo o tratamento, ela melhorou a qualidade de vida e recuperou seu sonhos, faz balé, aulas de francês, passou a se alimentar melhor e andar de bicicleta. Tanto para ela quanto para Gustavo, aceitar a EM é a chave do sucesso. “A esclerose se tornou minha amiga. Porque se eu ignorá-la, pode acabar trazendo problemas, tristezas e acabar afetando meu corpo”, diz a bióloga.

Essa postura é mais do que defendida por especialistas e uma das mensagens para o Dia Nacional de Conscientização da Esclerose Múltipla, celebrado em todo dia 30 de agosto. “Em qualquer situação de doença crônica, é preciso aceitar, se colocar no lugar de motor do seu próprio cuidado”, afirma o neurologista Denis Bernardi Bichuetti, professor de neurologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e consultor científico da AME.

Impactos

Dados preliminares de uma pesquisa sobre o impacto da EM na vida das mulheres da América Latina, encomendada pela Merck, mostrou que 64% das brasileiras tiveram seu relacionamento com o parceiro afetado após o diagnóstico. Na vida social, 78% sentiram algum grau de exclusão social ou discriminação por conta da doença. A avaliação ouviu 411 mulheres da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e México.

Estima-se que a doença afete 2,5 milhões de pessoas no mundo e de 30 mil a 35 mil no Brasil. Devido às complicações, deixar de trabalhar pode ser uma consequência em alguns casos. Uma pesquisa nacional feita com 804 pessoas com EM descobriu que 41% estava desempregada dentro de uma média de oito anos após o início da doença, mesmo com alto nível educacional. Os dados na América Latina apontam que 16% das mulheres deixaram seus empregos, 37% reduziram as horas trabalhadas e metade não recebeu apoio adicional no local de trabalho.

Diagnóstico

Um dia, há 18 anos, Gustavo San Martin começou a sentir a visão turva. Ele foi a um oftalmologista que mal olhou para ele e disse que precisava de óculos. Sentindo que o caso era mais sério, o administrador buscou outro profissional, que o analisou melhor e disse que os sintomas poderiam indicar cinco doenças, uma delas a esclerose múltipla.

Já Aline, um dia, acordou com um formigamento no braço. Ela pensou que tinha dormido de mal jeito ou estava nervosa pela qualificação de seu mestrado, naquela semana. Depois de permanecer com as mesmas sensações, ela consultou um neurologista, que a “diagnosticou” com estresse e receitou um fitoterápico. Sem resultado, e tendo um novo sintoma (“um ‘choquezinho’ na base da coluna”), ela foi atrás de um ortopedista. Por meio de uma ressonância magnética, o quadro foi melhor investigado, até chegar ao diagnóstico. Antes de tudo isso, em 2015, ela foi tratada por labirintite devido a constantes tonturas, outro possível sintoma da enfermidade.

A trajetória dos dois é parecida com a da maioria dos diagnosticados com EM. O neurologista Bichuetti conta que nos anos 1990 demorava-se de dez a 12 anos entre o primeiro sintoma e a constatação da doença. Nos anos 2000, esse tempo caiu para cinco a oito anos. De 2015 para cá, a média é de seis meses a dois anos. “O médico não conhece, a pessoa não faz exame ou o exame não está disponível, tem pedido de exame errado”, elenca o médico para o motivo dessa demora. O fato de demorar muito tempo é que doença progride. E quanto mais progride, menos consegue reverter esses sintomas.

Sintomas e causas

A esclerose múltipla é uma doença genética em que o sistema imunológico ataca a mielina, camada que reveste as células do sistema nervoso central. Quando ela é afetada, a comunicação entre os neurônios fica comprometida, resultando em diferentes consequências.

Há uma multiplicidade de sinais que podem ocorrer em quem tem EM: visão turva, formigamento, perda de força, falta de sensibilidade, alteração do equilíbrio, incontinência urinária, alteração de memória. O professor da Unifesp destaca que nem todas as pessoas terão esses sintomas, mas todos os sintomas são possíveis de alguém sentir.

Bichuetti afirma que há mais de 200 alterações genéticas envolvidas no risco de desenvolver esclerose múltipla, além de fatores ambientais, tais como: exposição solar, obesidade na adolescência, consumo excessivo de sal, alimentação industrializada, sedentarismo e tabagismo. A doença é mais comum em adultos jovens, sendo que o início precoce ocorre entre 20 e 40 anos de idade. O médico afirma que a enfermidade não interfere na expectativa de vida da pessoa.

Tratamento

O neurologista explica que o tratamento se divide em preventivo e sintomático. O primeiro compreende medicações de baixa, média e alta potência. “Hoje, tem no mundo entre 12 a 13 medicamentos com reconhecida eficácia para bloquear a progressão da doença. No Brasil, dez deles estão disponíveis com bula da Anvisa, oito pelo SUS”, diz.

Já o tratamento sintomático varia de acordo com a necessidade de cada paciente. Pode ser preciso fazer fisioterapia, fonoaudiologia, passar com psicólogo ou psiquiatra e fazer acompanhamentos com ginecologista e urologista. Remédios antidepressivos e para fadiga também podem ser prescritos. “O tratamento é contínuo, consegue frear a evolução e frear a história natural da doença”, finaliza o médico.

Autor: Ludimila Honorato
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