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‘O Mistério de Henri Pick’, um thriller literário cheio de graça

29/07/2019

“O Mistério de Henri Pick”, de Rémi Bezançon, pode ser definido como um “thriller literário”, gênero que talvez só faça sentido em países como a França, em que a cultura e a literatura ainda tenham certa centralidade.

Quem é Henri Pick? Um anônimo pizzaiolo de Crozon, na Bretanha, que, dois anos depois de morto, torna-se celebridade póstuma. Isso acontece quando um manuscrito assinado por ele é encontrado na biblioteca da cidade e, publicado, converte-se em best-seller e febre da estação literária. Sua família mostra-se perplexa. A viúva diz que seu marido não era um escritor de domingo e nem rabiscava versos após o expediente. Não lia. A única coisa que escrevia era a relação de compras necessárias para abastecer seu estabelecimento, de muito boa reputação local.

O manuscrito de Pick fora encontrado por uma jovem editora, Daphné Despero (Alice Isaaz) que, em visita à região em companhia do namorado, o também escritor Frédéric Koskas (Bastien Bouillon), fora conhecer a biblioteca local. Lá ficara intrigada com uma sala reservada a “obras recusadas”. Autores anônimos que haviam escrito seus livros em total discrição, lá depositavam seus títulos condenados ao ineditismo. Uma espécie de cemitério de livros. Havia títulos exóticos e também o manuscrito de Henri Pick que, por acaso, caiu nas mãos de Daphné. Ela o leu, encantou-se e resolveu publicá-lo. À parte a qualidade do texto de Les Dernières Heures dune Histoire dAmour (As Últimas Horas de uma História de Amor), entendeu que seria excelente propaganda o anonimato do autor. Sucesso à vista. E dito e feito.

O caso literário transforma-se em história de detetive quando a família é convidada a participar do badalado programa de televisão comandado pelo crítico Jean-Michel Rouche (Fabrice Luchini). Rouche é inspirado no apresentador Bernard Pivot, que manteve durante 25 anos Apostrophes, um programa literário na TV francesa. Em meio à emissão, porém, Rouche dá um tremendo passo em falso e passa a questionar a autoria do livro, para indignação da viúva, dos familiares presentes, da direção do programa e de sua própria esposa. Caído em desgraça, Rouche resolve ocupar o tempo livre tentando desvendar o mistério, na inusitada companhia da filha de Pick, Josephine (Camille Cottin).

A recusa de obras que depois se tornaram famosas faz parte da história literária. “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust, foi recusado por ninguém menos que André Gide, selecionador de obras para a Editora Gallimard. Voyage au Bout de la Nuit (Viagem ao Fim da Noite), de Louis Ferdinand Céline, foi recusado. Ninguém queria publicar “Ulisses”, de James Joyce. E por aí vai.

Portanto, Henri Pick é um caso notável, mas não de todo desconhecido do mundo literário. Quer dizer, sua história, embora pouco provável e surpreendente, faz sentido, não é uma ideia destrambelhada ou pouco crível. Apenas curiosa e inusitada. E, por inusitada e curiosa, propícia a causar um furor de mercado. Talvez se o livro viesse de um jovem parisiense promissor, ou de um medalhão já consagrado pela Academia, não causasse o mesmo furor. Mas, vindo de um pizzaiolo bretão…

Esse é o subtema interessante do filme. Num ambiente supersaturado de informações, como fazer com que uma delas sobressaia sobre as outras e se distinga no mar de ofertas em que se transformou a sociedade contemporânea? Apenas pelo inusitado. Ou seja, pelo que haja de radicalmente diferente, não na obra em si, mas em seu autor. No caso, o modesto Henri, que escrevia escondido e, no momento da revelação, já não pode falar sobre seu livro, porque está morto.

Não por acaso, a certa altura do filme, Rouche fala de um estranho autor que está lendo agora e que, no auge do seu sucesso, mantém-se no anonimato e recusa entrevistas. Quem, na nossa sociedade midiática, em que tudo é avaliado em termos de aparição pública, em redes sociais e likes, ousaria ficar à sombra e deixar que sua obra falasse por si? Bem, quem gosta de livros sabe que esta não é uma personagem de ficção – ela existe, chama-se, ou diz chamar-se Elena Ferrante. Best-seller mundial, ninguém sabe ao certo de quem se trata, ninguém conhece seu rosto e não se sabe nem se é homem ou mulher. Ferrante – seja lá quem for – é autora, entre outros livros, da “Tetralogia Napolitana”, que vendeu muito e no mundo todo e já virou série de sucesso na HBO. Um caso exemplar e real de como a recusa ao marketing pode virar marketing por si só.

No recente “Vidas Duplas”, Olivier Assayas discute as transformações do mercado de livros, abalado pela revolução digital. É uma coisa bem palpável no mundo todo, mas apenas a França parece dar importância ao fato, a ponto de transformá-lo em filme. Livros são centrais na cultura francesa. Ainda.

Daí que o mesmo mercado editorial possa ser o tema central nesta agradável comédia que é “O Mistério de Henri Pick”. Sem exibicionismos, expõe os prazeres e as contradições de uma cultura livresca, alma da França, que tem Voltaire, Rousseau, Zola, Montaigne, Proust, Balzac e tantos outros na condição de heróis nacionais. Mas, mesmo na França, essa centralidade literária parece em processo de erosão diante do culto à celebridades deste estranho mundo novo das redes sociais, dos likes e da superficialidade. “O Mistério de Henri Pick” fala de tudo isso. Com muita graça e sem qualquer afetação, peso ou sobrecarga intelectual inútil. Fabrice Luchini e Camille Cottin são uma dupla de detetives em estado de graça. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Autor: Luiz Zanin Oricchio
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