Variedades

A vida no sertão

13/07/2019

Uma vez por ano, Jarid Arraes volta ao Cariri, no Ceará, de onde saiu na virada de 2014 para 2015 para se dedicar à sua carreira de escritora em São Paulo. Vai para visitar a família. Da última vez, já com seu novo livro em andamento, decidiu olhar com mais atenção e fotografar a região. Percebeu uma mudança grande, uma descaracterização do lugar: casarões históricos demolidos, árvores cortadas, fachada das casas sem as pinturas características e com azulejos para baratear a manutenção. “Parece que tudo virou um banheirão. É uma lógica de quem se desconectou da terra, de suas raízes – porque nunca se sentiu pertencente ou não se identifica com a cultura. Entendo isso bem, porque também não me identifico com a cultura de uma cidade do interior, religiosa, mas tive tempo de pensar sobre isso, de escrever um livro sobre isso, e de fazer as pazes com minha terra e perceber que temos um elo de afeto, uma história”, diz a autora em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, em Paraty. Jarid é uma das convidadas da Festa Literária Internacional de Paraty e divide hoje o palco com a americana Carmen Maria Machado.

“Vou falar sobre essa história das árvores cortadas na Flip. Se você corta suas raízes, você morre. Esse livro é isso: eu lidando com minhas raízes que por muito tempo foram ignoradas”, diz. Esse acerto de contas foi feito, indiretamente, no processo de escrita de Redemoinho Em Dia Quente, um livro de contos que retrata mulheres do Cariri fazendo coisas inesperadas.

Escrever sobre mulheres, ter narradoras mulheres. Esse sempre foi o compromisso de Jarid, que é cordelista como o pai e o avô, e que ficou conhecida por subverter a lógica do cordel ao deixar de lado Lampião e outros temas tradicionais para falar de gênero e raça. Ela é autora de Heroínas Negras Brasileiras em 15 Cordéis, de As Lendas de Dandara, que, ela conta, será adaptado para um especial da Globo, e do livro de poemas Um Buraco Com o Meu Nome. Redemoinho Em Dia Quente é seu primeiro livro por uma editora grande: a Alfaguara. E ele começou a nascer na Flip do ano passado. Jarid participava da programação paralela do evento, em diversas casas, quando foi parada na rua por uma editora que se disse fã de seu trabalho e perguntou se ela tinha algo para publicar. Jarid tinha seis contos que foram escritos entre 2015 e 2017 e mostrou na volta do festival. A aceitação foi boa e partiu para escrever outros – neste momento, já tinha mais clara essa ideia de escrever sobre as mulheres do sertão, de um sertão sem aquela imagem do chão rachado e da carcaça da vaca, ela explica. “Tem pobreza também, mas a vida é mais do que isso. É possível ter outros conflitos durante a pobreza. Você consegue ter vida amorosa durante a pobreza e sofrer violência durante a pobreza. Essa é a minha tentativa de fazer um retrato das coisas que eu vi.”

Entre suas personagens estão uma beata que toma um alucinógeno e vê Padre Cícero, uma mototáxi em seu primeiro dia de trabalho, meninas, jovens, idosas lésbicas, uma mulher trans e muitas outras. Apenas um dos textos não é ficção, embora as ficções remetam à sua memória. Despedida de Juazeiro do Norte é escrito em primeira pessoa, é a despedida de Jarid da cidade onde nasceu em 1991.

Um dos textos mais sensíveis é Amor com Cabeça de Oito, sobre a descoberta do amor, sobre os primeiros entendimentos do que é a pobreza extrema e sobre caminhos errados que tomamos. A certa altura, a narradora conta que a mãe de uma amiga sempre dava um jeito de mandar todos embora de sua casa na hora da refeição, que ela não entendia o porquê, mas que agora imaginava que não tinha comida suficiente. Mais adiante na vida das personagens e do conto, ela escreve: “Eu ainda era amiga de Corrinha, seu Manéu não era mais carroceiro, tava trabalhando como vigia. Minha casa tava toda reformada. Todo mundo tava melhor de vida, a rua mais bonita, toda casa tinha parede pintada. Eu penso que não faltava mistura no prato de ninguém.”

Não é o ponto principal do conto, mas é simbólico. “Não estou lá para acompanhar como eu acompanhava, mas esse momento do conto remete a uma memória que tenho da rua em que morava quando foi criado o Bolsa Família. As casas eram muito simples, algumas não tinham reboco, mas havia uma de taipa onde morava uma mãe com vários filhos – todos na escola. A primeira coisa que fizeram depois do Bolsa Família foi transformar a casa de taipa em casa de alvenaria, com banheiro (só tinha um buraco no fundo da casa). Foi muito marcante e, se eu não colocasse isso que testemunhei, e que foi poderoso, no livro, eu não retrataria o Cariri que eu queria retratar, não tiraria essa ideia do sertão que é só uma coisa e que não pode se transformar, onde as pessoas não podem melhorar de vida, onde as pessoas não podem ser mais do que pobreza.”

Há outro conto muito bonito, Telhado Quebrado Com Gente Morando Dentro. Ele aborda a relação de duas irmãs crescendo juntas, cúmplices nas brincadeiras, nos trabalhos domésticos, que se afastam por um mal-entendido e uma delas, nesse período, sofre uma tentativa de abuso do pai. Os textos refletem a complexidade das mulheres, a capacidade de continuar vivendo. “Vai fazer o quê? Somos ensinadas a ser fortes acima de todas as coisas, mesmo não podendo ser – e depois, se puder, vai tentar resolver na terapia”, diz, e ri.

Jarid Arraes vendeu 1.200 cordéis nas últimas semanas, e isso não é pouco, e nunca foi convidada para um evento de cordel. Ela incomoda, aponta o machismo e o racismo nessas obras. Está feliz com o convite para Flip, e brinca que, se não fosse nesta edição que homenageia Euclides da Cunha, autor de Os Sertões, nunca mais seria convidada. Falando sério agora, ela diz que muita coisa mudou nos últimos anos com relação à aceitação dos temas que trata em sua obra, e também na Flip depois da curadoria de duas mulheres, Joselia Aguiar e agora Fernanda Diamant. Mas é crítica: “Muitas vezes, eu viro a outra literatura, a literatura afro-brasileira, mas ninguém fala de literatura branco brasileira.

Aí tem a literatura LGBT, mas ninguém fala em literatura hétero. Falam em literatura feminina, mas não em literatura masculina. Tem essa literatura universal escrita por homens brancos e tem os outros – então aparecem os nichos. Nada contra os nichos, que são importantes, porque assim chegamos nas pessoas que nunca leram personagens que se parecem com elas. E não as encorajamos a escrever. Foi quando conheci Conceição Evaristo que acreditei que podia escrever. É importante questionar por que sempre viramos o outro, por que parece que a gente nunca faz parte igual.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Autor: Maria Fernanda Rodrigues, enviada especail
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