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‘Com o HIV pude enxergar o copo meio cheio’, diz ativista LGBT

20/06/2019

No dia 28 de junho de 2008, João Geraldo Netto recebeu o diagnóstico que mudaria sua vida: era portador do vírus HIV, sigla em inglês para o Vírus da Imunodeficiência Humana. O vírus afeta células do sistema imunológico, podendo destruí-las se a pessoa não procurar o tratamento antirretroviral. Quando o organismo fica totalmente incapaz de lutar contra infecções, o paciente desenvolve a aids.

No caso de João, a descoberta foi tardia. Tinha 20 anos quando se infectou por meio do sexo desprotegido, mas descobriu apenas aos 26, durante um exame de rotina: “Um médico pediu e eu nunca tinha feito, então a percepção do risco não veio de mim”. Como tinha um relacionamento fixo e o ex-marido era negativo, jamais imaginou que pudesse ter o vírus, principalmente porque nunca apresentou indícios. O tratamento veio quatro anos depois da descoberta, ou seja, após mais de dez anos convivendo com o vírus em seu corpo. “Quando me infectei, 17 anos atrás, só podia iniciar o tratamento quando adoecia. Como eu nunca adoeci, fiquei 10 anos sem tratamento. Quando mudou a regra, eu pude começar”, esclarece.

De acordo com um relatório divulgado no fim de 2018 pela Unaids, o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/aids, quase 37 milhões de pessoas em todo o mundo vivem com HIV. Dessas, quase 40% não têm acesso a medicamentos. Muito em razão dos avanços na saúde, o número de novas infecções caiu 47% desde o pico em 1996 e continua diminuindo com o passar dos anos.

Conhecido popularmente por coquetel, a Terapia Antirretroviral (Tarv) surgiu na década de 1980 para combater a multiplicação do HIV no organismo da pessoa. Os medicamentos não matam o vírus, mas impedem sua replicação. Aqui no Brasil, são distribuídos gratuitamente somente pelo SUS (Sistema Único de Saúde) em mais de 20 tipos diferentes de antirretrovirais, o que contribui para a redução da velocidade de disseminação da doença.

Quando começou o tratamento, João não se adaptou ao primeiro esquema – nome dado à primeira linha de remédios, a mais geral de todas, definida pelo Ministério da Saúde com base em estudos científicos. O medicamento acarretou diversos efeitos colaterais, como hepatite medicamentosa (inflamação no fígado) e dislipidemia (desregulamento das gorduras do corpo). Após trocar o remédio três vezes, se adaptou ao quarto esquema e não possui mais nenhum efeito colateral.

Como realiza o tratamento há anos, João passou a se enquadrar na categoria “indetectável”, em que não é possível detectar a presença do vírus no organismo. Isso ocorre porque o tratamento interrompe a cadeia de transmissão que replica o vírus na corrente sanguínea, deixando-o adormecido nas células do corpo. No entanto, isso não representa a cura para um portador de HIV: “Se eu parar de tomar o medicamento, o vírus sai daqueles reservatórios”.

O termo agora também faz parte de seu trabalho no YouTube, rede social em que acumula mais de 18 mil inscritos. Com o canal Super Indetectável, João reforça questões importantes para soropositivos, como o uso correto dos medicamentos e cuidados com a saúde.

No Brasil, existem duas formas de prevenção disponíveis gratuitamente para a população. A PEP (Profilaxia Pós-Exposição) é usada após uma provável exposição ao vírus. No entanto, é um tratamento intensivo que dura 28 dias e deve ser iniciado dentro de 72 horas após a exposição, já que sua eficácia diminui com o passar do tempo. Já a Profilaxia Pré-Exposição, chamada de PrEP, consiste no uso de antirretrovirais por uma pessoa soronegativa. É o método mais indicado para reduzir o risco de contrair o HIV e indicado para parceiros sorodiferentes.

A distribuição dos medicamentos tem como população-chave moradores de rua, prostitutas, travestis e gays, grupo de pessoas mais afetadas pelo vírus. “São pessoas que, por diversas questões sociais e comportamentais, são mais vulneráveis. Elas têm várias barreiras, são marginalizadas e não têm acesso aos mecanismos da saúde”, esclarece João, após anos de estudo sobre o tema em trabalho no Ministério da Saúde. Para ele, é uma doença como qualquer outra, que não vê classe social. “Eu costumo falar que o HIV não é um problema clínico difícil de tratar. Hoje, os milhares de pessoas que morrem anualmente não é porque tomam remédios devastadores. Não mais. É porque, na verdade, é difícil de tratar socialmente”, reflete.

Quando se trata de transmissão do HIV, há muitos mitos e tabus que ainda precisam ser esclarecidos. Sexo sem camisinha, transfusão de sangue e objetos cortantes originam a grande maioria dos casos. Grávidas também correm o risco de passar o HIV ao bebê em três situações: durante a própria gestação, no parto ou na amamentação. A informação de que beijo, suor ou abraço podem transmitir a doença está incorreta, assim como compartilhar copos, talheres, sabonetes, toalhas e lençóis.

“Quando eu descobri (que tinha o vírus), pensei que ia morrer, principalmente porque meu parceiro era negativo, então eu só podia ter pego antes dele. Percebi que eu já vivia com o vírus há mais de seis anos”, relembra. A primeira pessoa a saber da notícia foi seu ex-marido, com quem tinha um relacionamento fixo desde os 20 anos. Apesar de acreditar em algumas hipóteses, João diz que o parceiro não teve interesse em pesquisar a fundo os motivos para não ter contraído a doença.

Já a família ficou sabendo meses depois, quando ele considerou que já estava restabelecido e pronto para o diálogo. “Organizei documentos, exames, coisas da internet, e levei pra minha mãe. Sentei na cama e falei que queria conversar”, conta. Num primeiro momento, sua mãe pensou que fosse câncer, mas logo em seguida João revelou o diagnóstico positivo do HIV. Emocionado, ele relembrou o momento: “Ela ficou parada olhando para mim. Eu falei que estava tudo bem, mostrei minha pasta com os exames. Depois que terminei de falar, ela disse: ‘Tudo bem, doenças acontecem, mas uma coisa que você pode fazer e que vai me matar é você não se tratar. Se um dia eu souber que você não está se tratando, você vai me matar aos pouquinhos”.

Em 2010, dois anos após o diagnóstico, um trabalho traria a informação à tona para toda a família. “Eu fui convidado para fazer uma campanha do Ministério da Saúde. Eu já tinha o canal (no YouTube), mas não falava que era positivo, só falava do HIV”, conta. O convite incluía a participação de João na campanha nacional do Dia Mundial de Luta Contra Aids, celebrado em 1° de dezembro. Ele aceitou e fez fotos ao lado de artistas conhecidos, como Bruno Gagliasso e Luana Piovani. Ao ver as imagens na internet, uma prima perguntou sobre o assunto e ele pediu para que ela contasse à família, que estava reunida.

Após nove anos, terminou o casamento com seu ex-marido. Depois conheceu André na faculdade, com quem hoje é casado. Como estava iniciando um relacionamento com uma nova pessoa, João achou importante contar que era soropositivo. O que ele não esperava é que o parceiro já soubesse disso por meio da campanha de 2010. “Ele falou que tudo bem e pediu para que eu ensinasse como funciona”, relembra. Ele explica que, teoricamente, André não precisa tomar nenhum medicamento, já que João está indetectável e não transmite o vírus. Porém, ele faz uso da PrEP (antirretrovirais para pessoas soronegativas) e realiza testes de tempos em tempos.

Apesar de a rotina ter se modificado em momentos pontuais, João confessa que as consequências positivas agregaram em sua vida. “Depois que eu descobri que tinha HIV, muita coisa mudou. Eu passei a viver as coisas mais intensamente, pois tive a certeza de que podia morrer. Quando você descobre que tem uma doença, percebe que a vida é muito frágil”, pondera. A reflexão vai além: “Eu penso que um dos maiores objetivos da morte é refletir sobre a vida. Comecei a dar atenção para coisas que não dava, com um maior carinho, maior valor. O HIV me trouxe esse lado positivo, de sempre enxergar o copo meio cheio”, completa.

Autor: Bárbara Pereira – colaborou Marcella Costa
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