Variedades

‘Os Sertões’ pelo olhar de Miguel Gomes

05/05/2019

O cineasta português Miguel Gomes estava no avião, vindo ao Brasil em 2015, quando lhe ocorreu adaptar Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, o livro escolhido para aquela viagem. Ele ainda estava bem no começo, lá pela página 50 (de mais de 600), mas decidiu ali encarar o desafio – e, desde então, está obcecado por isso.

“Filmar Os Sertões é a única coisa que me tem interessado fazer em cinema nos últimos quatro anos”, diz o diretor que deve começar a rodar Selvajaria – o título é emprestado de Blaise Cendrars, da tradução que ele queria, mas nunca fez do clássico brasileiro – em 2020.

Miguel Gomes, que entre 2016 e 2017 passou algumas semanas em Canudos, no interior da Bahia, durante a preparação do roteiro, volta ao Brasil para participar, entre 10 e 14 de julho, da Festa Literária Internacional de Paraty. Euclides da Cunha será o autor homenageado.

Diretor dos elogiados Aquele Querido Mês de Agosto (2008), Tabu (2012) e As Mil e Uma Noites (2015), Miguel, de 47 anos, diz não entender quem defenda pular a primeira parte de Os Sertões (A Terra) e ir logo para A Luta – a Guerra de Canudos que Euclides cobriu como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo. “Fiquei impressionado com o arranque do livro e A Terra talvez seja a minha parte preferida. Fiquei completamente obcecado por tentar descobrir um equivalente cinematográfico para o lirismo literário usado por Euclides na descrição da natureza. Como filmar as plantas da caatinga transfiguradas pela poética euclidiana? Ora aí está um bom desafio”, conta em entrevista por e-mail.

E que história é essa que ele quer contar? “Partindo de Os Sertões, não se conta uma história, contam-se muitas histórias. A mais vasta, contendo as outras todas, é sobre a criação e a extinção de um mundo. Os Sertões não é um romance ou uma novela, é um objeto literário híbrido e inclassificável. Portanto nunca poderia ser sobre “João que ama Maria e depois chegou um profeta, etc, etc…”, explica.

Ainda sobre o livro, Miguel diz que sua estrutura obedece a uma matemática muito elaborada, feita de repetições, variações e desdobramentos. Uma sofisticada obra de engenharia, cerebral. “Mas o que me fascina é que toda essa construção racional convive com uma escrita completamente temperamental. Cheia de caprichos, digressões extravagantes, transições inesperadas. Na leitura quase dá para sentir as flutuações de estados de alma do autor: passa do arrebatamento dramático a securas irônicas, do arrebatamento e da fúria ao cansaço e ao pudor. No roteiro, tentamos capturar essa caprichosa e emocional música da narração euclidiana.”

Ele conta que trabalhou ao longo de dois anos com outros três roteiristas para tentar encontrar um jeito de estar à altura desse desafio sem trair a arquitetura do livro. Não haverá atores profissionais no filme: o elenco será formado pela população de Canudos. E Miguel diz que conta com eles para também construir a cidade do filme – que será rodado em 35 mm e em cores. Ele prefere não dar mais detalhes sobre a produção. “No meu trabalho nada acaba sendo exatamente aquilo que imaginei inicialmente”, justifica.

Nas idas a Canudos, ele conheceu e filmou a população. “O roteiro resulta do embate entre essa realidade e a realidade do livro.” A regra de escrita adotada pela equipe foi alterar Os Sertões a partir de Canudos, um processo, ele explica, que nunca estará completo até a filmagem.

Outro desafio da produção será a guerra em si. Para o diretor, com algumas poucas exceções, as cenas de ação no cinema industrial são todas muito parecidas e obedecem a regras técnicos, resultando em cenas mecânicas e despersonalizadas. Ele vai tentar contrariar isso, e acredita que suas limitações, em comparação com os blockbusters de Hollywood, vão acabar ajudando. Ele conta ainda que não se sente atraído pelo espetáculo da violência, mas não tem como fugir das batalhas. A cena deve ter 20 minutos. “No livro, há uma dimensão cômica burlesca no desenrolar de grande parte das batalhas, e isso interessa-me.” A Guerra de Canudos durou de 1896 a 1897 e matou, só na batalha final, cerca de 30 mil pessoas.

E como essa história passada em 1897 dialoga com os dias atuais? “Os Sertões é um balanço civilizacional feito no início do século 20. Lamentavelmente, passados mais de cem anos, esse balanço não perdeu qualquer atualidade. No contexto do Brasil como no do resto do mundo”, responde o cineasta.
Orçado em ¤ 5 milhões, o filme Selvajaria é uma coprodução de O Som e a Fúria (Portugal) e RT Features (Brasil), com participação da França, Alemanha e do México.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Autor: Maria Fernanda Rodrigues
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