Variedades

Após problemas de produção, estreia o esperado ‘O Homem que Matou Dom Quixote’

29/05/2019

Durante mais de 20 anos, Orson Welles tentou realizar sua transposição do romance mítico de Miguel de Cervantes para a Espanha contemporânea, mas estava escrito que seu Dom Quixote permaneceria inacabado – em 1960 e 72, as mortes dos atores Francisco Regueira (Quixote) e Akim Tamiroff (Sancho Pança) colocaram fim ao ambicioso projeto. Ao se lançar à sua adaptação, Terry Gilliam talvez não imaginasse o tanto de dificuldades que também iria enfrentar. Em termos de tempo, o período foi maior ainda. 30 anos! Incluíram a morte de Jean Rochefort, que seria Sancho Pança, a falta de recursos da produtora do português Paulo Branco – dos filmes de Manoel de Oliveira – para sustentar a imaginação delirante do cineasta, e as inúmeras batalhas judiciais.

Durante o processo, Gilliam perdeu os direitos, mas nem isso o fez desistir. Ele prosseguiu com o filme à revelia de Branco, um amigo de Cannes, mas que tentou embargar a apresentação especial, como obra de encerramento no Festival do ano passado. A ovação que Gilliam recebeu no palais pouco ou nada teve a ver com as qualidades do filme, e sim como um reconhecimento à tenacidade do artista. “Consegui!”, bradou o ex-Monty Python, para logo acrescentar, reconhecendo o esforço coletivo, “conseguimos!”

“We got it” – e foi com alívio que Gilliam havia feito a ‘montée des marches’, a tradicional subida da escadaria do Grand Théâtre Lumière. Ex-integrante do irreverente humorístico inglês, ele, na sua fase independente do grupo inglês, fez filmes como Brazil, Os Doze Macacos, O Pescador de Ilusões, As Aventuras do Barão Munchausen, Medo e Delírio, Os Irmãos Grimm, etc. Vários desses filmes lidam com os dilemas da criação e da arte, e O Homem Que Matou Dom Quixote não foge à regra. Adam Driver faz um cineasta cínico que entra na loucura de um sapateiro espanhol que se considera o próprio cavaleiro da triste figura. Jonathan Pryce é quem faz o Quixote, e as aventuras do herói de Cervantes passam a ser as dele, e de Driver – que se chama Toby.

O diretor do filme dentro do filme, tal como está na tela, é uma contribuição do escritor Tony Grisoni, que há quatro anos – cinco, pois Gilliam fez essas declarações em Cannes, 2018 -, tem levado muita gente a ver O Homem Que Matou Dom Quixote como autobiográfico. “Sem dúvida que seria outro filme, se eu tivesse conseguido concluí-lo antes. Minha percepção do mundo e da arte, da própria vida, mudou muito porque se trata de um lapso de tempo muito grande, e muita coisa ocorreu comigo. Os atores foram se sucedendo e, mesmo os que não estão no filme, acabado enriquecendo meu olhar sobre o personagem. E, no final, não sou eu, mas um livro imenso, que abarca a experiência humana, e que eu, numa espécie de delírio, me dediquei, obsessivamente, a formatar, como obra cinematográfica, para o espectador. O próprio cinema mudou, mas a ideia foi sempre abordar a imortalidade do Quixote como personagem, e buscar equivalentes para complexidade da escrita.”

Gilliam admite que a loucura do Quixote é um pouco a dele. “Houve um momento, lá atrás, quando as coisas começaram a dar errado para mim, e foi na época de Barão Munchausen, que eu me vi na encruzilhada. Conheci tanta gente talentosa que se perdeu em Hollywood. Jurei, para mim mesmo, que nunca faria filmes para ganhar dinheiro, mas só aqueles que fossem transcendentais para mim. E aí me ofereceram belos roteiros hollywoodianos, como os de O Pescador de Ilusões e Os Doze Macacos, e eu quebrei minha regra, indo filmar no cinemão. Descobri que, para ser fiel a mim mesmo, às vezes teria de me trair.”

E o cineasta acredita que esse sentimento permeia as histórias de Toby e do Quixote. “(Orson) Welles também quase enlouqueceu querendo fazer seu Quixote, trazendo-o para a Espanha dos anos 1960 e 70.” E aqui é preciso interromper o texto para advertir sobre o spoiler. “O final do filme foi mudando ao longo do tempo, e foi bom que eu tenha demorado tanto. Porque fazer com que Toby, após a morte do Quixote, assuma suas linhas deu ao filme uma continuidade temporal muito rica. Creio que atingi a imortalidade e, no limite, fiz o filme que queria, mesmo não sendo o ideal.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Autor: Luiz Carlos Merten
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