Variedades

A última aula

08/05/2019

Agora, olhando as fotos de Agnès Varda na homenagem que recebeu no Festival de Berlim, é possível ver como ela estava debilitada. Havia um comentário de que estava doente, mas poucos sabiam da gravidade de seu estado. Agnès recebeu sua homenagem em 13 de fevereiro, durante a exibição do documentário Varda par Agnès. Morreu em 29 de março. Faria 91 anos em 30 de maio. Cannes lhe presta outra homenagem e ela – uma foto tomada durante a realização de La Pointe Courte, de 1954 – ornamenta o pôster deste ano. Varda por Agnès estreia nesta quinta, 9.

Pressentindo o fim, Agnès antecipou-se e fez a própria avaliação de seu legado. Mas mascarou o gesto. Na coletiva, disse que era convidada com frequência para ministrar master classes e que Varda por Agnès era a sua master class filmada. Quando lhe pedissem novas aulas magnas, enviaria o filme. Queria ter tempo de se concentrar nas suas instalações. Deixara de se considerar cineasta para se assumir como artista. Era a sua forma de dizer que, aos 90 anos, queria começar outra etapa. Em março, para comemorar o mês da mulher, o Belas Artes promoveu a exibição da versão restaurada de Cléo das 5 às 7. Um prólogo em cores e a história, em P&B, de Cleópatra, a valquíria interpretada por Corinne Marchand.

Loira, e bela, e alta, ela anda por Paris angustiada, à espera do resultado de um exame que vai dizer se tem câncer. Tudo lhe parece indicar que sim, desde as cartas que consulta no início, e mesmo que a cartomante lhe diga que a carta da morte pode ser só uma mudança radical. Cléo anda contra o relógio, canta, encontra o soldado. Vive uma experiência enriquecedora nessas duas horas. O filme de 1962 não perdeu nada de sua força, nem originalidade. E apresenta uma característica importante de Varda – seu amor pelas pessoas. Há todo um lado documentário nesses passeios por Paris, a forma como Agnès filma anônimos no bistrô, no mercado, nas ruas.

De cara, sentada na sua cadeira de diretora, no palco de um belo teatro que vai se transformar em cinema para acolher as projeções de trechos de seus filmes, Varda anuncia as três pedras básicas do seu credo autoral. “Inspiration, création, partage.” A inspiração é o motivo, o tema que a leva a realizar seus filmes e instalações. A criação é o processo, o trabalho pelo qual transforma ideias e intenções em espaço, tempo, audiovisual. E o compartilhamento é o objetivo final. “Nenhum diretor filma, se não for para mostrar seu trabalho”, reflete. Justamente, a reflexão. Em Berlim, disse que não era nem um pouco difícil avaliar seu trabalho. “Quando termino um filme nunca penso se poderia ter feito melhor, ou se poderia ter saído pior. O que me interessa é avaliar meu processo de criação, e o porquê. Tento sempre manter-me espontânea. O documentário (Varda por Agnès) tem duas partes, eu no século 20 e no 21. No século 20 eu ainda era diretora, no 21, sou uma artista.”

Talvez surpreenda que a mulher que fez filmes como Cléo, As Duas Faces da Felicidade, Os Panteras Negras, Duas Mulheres Dois Destinos, Os Desajustados e Visages Villages pudesse afirmar que nunca quis dizer nada com seus filmes. “Só queria olhar as pessoas com minha câmera, e compartilhar.” Por isso mesmo repetia que suas ambições eram modestas. “Nunca fiz filmes de ação nem de ficção científica. Nunca achei que alguém fosse me dar muito dinheiro para fazer filmes. Então foquei nas coisas que conheço.” A morte do marido que amava, Jacques Demy, a luta dos negros e a afirmação das mulheres. Uma bela obra.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Autor: Luiz Carlos Merten
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