Variedades

Ódio em estado puro

07/03/2019

A jornalista e cineasta Susanna Lira cursava pós-graduação em direitos humanos em 2013 quando ficou sabendo que existia em São Paulo a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi).

Logo na primeira visita às instalações acanhadas no centro da cidade, a delegada responsável, Margareth Barreto, lhe apresentou um mapa com 23 grupos organizados de ódio que agiam de forma sistemática nas ruas de São Paulo.

Aquilo era uma verdadeira usina de informação.

Esse mosaico de gangues praticava toda sorte de violência contra gays, grupos étnicos e seguidores de religiões de matriz africana. Ódio em estado puro.

Uma das organizações atacava apenas nordestinos sempre às 6h da manhã em pontos de ônibus da periferia.

Susanna então mudou-se para São Paulo para acompanhar de perto a rotina pesada do Decradi e reuniu material para um documentário, que foi batizado de Intolerância.doc.
Seis anos depois, a reportagem visitou o galpão desativado de uma transportadora de valores na Barra Funda que foi transformado em uma réplica perfeita da delegacia para as filmagens das terceira (que estreia no segundo semestre) e quarta temporadas da série Rotas do Ódio, da Universal TV.

Umas das grandes apostas nacionais do canal, a série, a primeira ficção de Susanna, foi inspirada na norte-americana The Wire, da HBO, que foi criada por um ex-repórter policial e roteirizada por ex-policiais.

Antes de incorporar a delegada Margareth, a atriz Mayana Neiva, que atuou recentemente na novela Segundo Sol, da Globo, também fez uma imersão no ambiente visceral do Decradi, que não só acolheu a equipe como deu suporte para a empreitada e ajudou na construção do roteiro.

“Esse debate me interessa como ser humano: descobrir as vozes cada vez mais silenciadas na nossa cultura. A primeira temporada estreou na semana em que Marielle (Franco) morreu, e justamente falava da morte de uma mulher negra na periferia nas mesmas condições de um crime de ódio. (A série) tem uma consonância impressionante com a realidade”, disse a atriz ao ‘Estado’.

O fio narrativo é uma organização neonazista, a Falange, que sintetiza as 23 gangues mapeadas na vida real.

Escravidão

Na terceira temporada, o grupo continua à frente da trama após ser contratado para manter cidadãos bolivianos trabalhando em condições análogas à escravidão em confecções ilegais em São Paulo. “Eles usam a ideologia do preconceito para ganhar dinheiro. Há um discurso sem vergonha de ser racista e misógino”, disse Susanna ao ‘Estado’.

Na preparação para a terceira temporada, Mayana entrou em contato o universo subterrâneo do binômio moda e escravidão.

“Conheci uma boliviana que trabalhava 12h por dia e ganhava R$ 140 por mês. Ia das 6h30 da manhã até as 23h. A gente não percebe o mercado que está movimentando. Esses temas precisam ser discutidos”, contou a atriz.

Na quarta temporada – que já está sendo gravada, mas ainda não tem previsão de estreia -, a homofobia institucionalizada na vida de muitos imigrantes vai para o centro da investigação.

Em países como Nigéria e Angola é crime ser gay. “Quando essas pessoas migram para o Brasil, eles tentam repelir quando tem algum gay na comunidade. Tentam viver da maneira como viviam lá”, disse diretora de Rotas do Ódio.

A atriz transexual Renata Peron, que é ativista dos direitos LGBT, está no elenco desde a primeira temporada, mas ganhou protagonismo na quarta.

A história dela se funde com o roteiro. Ela perdeu um rim antes de buscar ajuda na Decradi da vida real.

Em tempo: parte do elenco é formado por atores que são imigrantes.

Dilma

Além de Rotas do Ódio, Susanna Lira prepara o lançamento nacional de dois documentários dirigidos por ela.

Torre das Donzelas mostra relatos inéditos da ex-presidente Dilma Rousseff e de suas ex-companheiras de cela do Presídio Tiradentes em São Paulo, e Mussum – Um Filme do Cacildis, sobre a vida do músico e comediante dos Trapalhões.

“Não sou engajada politicamente, mas com minhas inquietações e nas causas que acredito”, disse Susanna.

Torre de Donzelas estreou no Festival de Brasília, passou pela Mostra de Cinema de São Paulo, onde ganhou o prêmio do público, e circulou pelos principais festivais internacionais. Foi do Líbano, México, passando pelo Uruguai. O documentário estreia em maio.

“Tento cutucar as feridas sociedade. Fazer pensar”, disse a diretora.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Autor: Pedro Venceslau
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