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‘Mujica é admirado por quem não sofre com suas ações’

31/03/2019

Com a mudança de linha na última década nos governos de Paraguai, Argentina e Brasil, o Uruguai tornou-se um dos remanescentes entre governos de esquerda na América Latina. O nome mais cotado hoje para quebrar também a sequência da esquerda no país de 3 milhões de habitantes é Luis Lacalle Pou, do Partido Nacional. A eleição ocorre em outubro.

Este advogado de 45 anos, cujo único ofício na vida foi ser parlamentar, promete flexibilizar o Mercosul, colocar um fim na “farra” de criminosos e promover políticas de choque para reduzir o déficit.

Seu bisavô foi Luis Alberto de Herrera, principal referência do partido por cinco décadas. Seu pai, Luis Alberto Lacalle Herrera, governou de 1990 a 1995. No cargo, quebrou monopólios de serviços públicos, fez um severo ajuste com o qual foi possível reduzir o déficit de mais de 6% do PIB.

Lacalle pai concorreu pela última vez em 2009, quando foi derrotado por Mujica. Coube ao filho disputar a eleição seguinte, em 2014, sendo derrotado no segundo turno por Tabaré Vázquez.

Embora os nacionalistas sejam historicamente de centro-direita, ele diz que não é nem de esquerda nem de direita. Hoje, as pesquisas colocam o Partido Nacional alguns pontos abaixo do governismo, com o qual certamente disputarão o voto, mas tudo indica que Lacalle Pou seria apoiado pelos partidos Colorado (centro-direita), Independente (centro-esquerda) e De la Gente (direita), para construir um governo de coalizão.

• Hoje as pesquisas dizem que o sr. ganhará a disputa interna no Partido Nacional e será o principal desafiante da esquerda, no poder. O que faria primeiro como presidente do Uruguai?

A primeira questão a ser abordada será a econômica, é necessário controlar o déficit. Em paralelo, vamos lidar com a segurança. Terminará o recreio para criminosos: haverá maior presença policial nos bairros, serão fechadas as fronteiras para o tráfico de drogas e estamos considerando uma lei para abater aviões que sobrevoem nosso país transportando drogas. Também começaremos a trabalhar no fortalecimento dos laços com o Mercosul, algo que acredito ser muito importante.

• Que tipo de Mercosul?

Um mais flexível, como o aparentemente desejado pelo presidente argentino, Mauricio Macri, e o brasileiro, Jair Bolsonaro.

• Julio María Sanguinetti, que foi duas vezes presidente, agora é candidato pelo Partido Colorado e seu possível aliado em uma futura coalizão, disse que o modelo do Mercosul “está esgotado”. Qual a sua opinião?

O Mercosul deve ser mais aberto. Antes de assumir o cargo, seria bom ter reuniões com os presidentes da Argentina, do Brasil e do Paraguai. O Uruguai continua a ter o Brasil como seu segundo parceiro comercial – o primeiro é a China -, tem a Argentina como a maior fonte de turismo, e há milhares de uruguaios vivendo em ambas as fronteiras.

• Quando a hegemonia continental dos governos de esquerda se desintegrou nos últimos anos, o Uruguai perdeu terreno?

Quando supostamente existiam afinidades ideológicas, a Argentina nos cortou as pontes binacionais e nós tivemos decretos no setor automotivo do Brasil que complicaram nossa indústria. Onde estava essa afinidade? Pelo contrário, alguns políticos que fizeram negócios com a Venezuela avançaram, mas o bloco estagnou. Em 15 anos de governos da Frente Ampla, o único avanço foi um TLC (Tratado de Livre Comércio) com o Chile, o que não é grande coisa, pois já havia um acordo de complementação econômica. Ficamos fora de um TLC com os EUA.

• Sanguinetti também diz que a eleição será uma disputa entre aqueles que acreditam que a Venezuela é uma democracia e aqueles que não. Qual a sua opinião sobre isso?

A ditadura de Nicolás Maduro tem sido muito triste e está tristemente condicionada não pela ideologia, mas pelo dinheiro, pelos negócios que alguns fizeram sob proteção e sob a influência do governo da Frente Ampla. Estou falando de pessoas próximas ao poder, os governos de Mujica e Vázquez. Estamos amordaçados, para a conveniência de alguns.

• Como você vê a iniciativa Prosul?

A superpopulação de organismos internacionais faz com que alguns deles percam relevância. Não excluo o Prosul, mas sim outros organismos que foram criados e não têm nenhuma utilidade, por exemplo, a Unasul.

• E o Prosul não é igual à Unasul, mas com outra ideologia?

Sim, é verdade. Seria um erro se ele se tornasse um organismo ideologizado. Espero que isso não aconteça, pois essas estruturas têm de servir os países, não os governos do turno.

• Quanto vai influenciar a questão ideológica no virtual relacionamento de um governo seu com o mundo?

Pode-se até fazer um TLC com Cuba, pois temos economias complementares e não importa que eu esteja o mais longe possível do regime de Castro. Um lorde inglês, Lord Palmerston, disse e meu bisavô Luis Alberto de Herrera repetiu: “Os países não têm amigos permanentes nem inimigos permanentes, eles têm interesses permanentes”.

• No ano passado foi exibido um vídeo no qual o senhor pergunta, em tom de brincadeira, ao parlamentar da Frente Ampla, Rafael Michelini, filho de um dos fundadores da Frente Ampla, Zelmar Michellini, que desapareceu na ditadura, “quem será o Bolsonaro uruguaio?”. Qual sua opinião sobre o presidente brasileiro?

Tenho de dizer que minha aspiração é ser presidente do meu país. Neste caso, vou ter de me relacionar com os presidentes de todos os governos. Isso eu vou ter de fazer, mesmo se gostar muito deles, pouco ou nada. Obviamente, o presidente Bolsonaro herda uma crise que nasceu da corrupção e depois enfrenta uma situação difícil. Pelo bem da região, pelo bem do povo brasileiro, sem conhecê-lo, desejo-lhe sucesso. Quanto a sua campanha, devo dizer que talvez não seja minha maneira de fazer política.

• Em sua campanha anterior, em 2014, seu slogan era “A Positiva”, e em seu discurso pediu para resgatar o que havia de bom nos governos da Frente Ampla. Para esta eleição, segue o mesmo caminho e fala de “Um governo para evoluir”. Isto é, não tem um espírito de refundação. Isso difere muito da campanha do Bolsonaro no Brasil.

Dividir para reinar é tão antigo quanto dinheiro, mas se alguém desune, destrói e fere, é muito difícil que possa governar para todos. Não estou dizendo que este é o caso de Bolsonaro, só estou dizendo que o líder político do qual eu gosto é aquele que cura, une e constrói. No Brasil, houve uma polarização porque a crise política era muito acentuada e a corrupção era muito forte.

• Não é o caso do Uruguai?

Não, não é. O Uruguai nunca teve esses extremos. Entre outras coisas, porque o Uruguai tem partidos políticos fortes, e isso ajuda muito a cuidar da democracia.

• Durante a campanha o agora presidente argentino, Macri, com o qual se pode imaginar que o senhor tenha algum tipo de afinidade, prometeu não aumentar as tarifas, não desvalorizar, não perder postos de trabalho e não pedir dinheiro ao FMI. O oposto aconteceu. Que lições isso deixa?

Alguns da Frente Ampla dizem que nós, os nacionalistas, somos Macri; então eu pergunto, se somos Macri, vocês são os Kirchners? E eles dizem que não, então por que nos comparam? O caso argentino, no entanto, deixa algumas lições, como a de que são preferíveis as políticas de choque às do gradualismo. Quanto mais rápido se adotem as medidas que devem ser tomadas, mais cedo os resultados serão vistos.

• Nas eleições de 2009, quando José Mujica venceu, o candidato ao Partido Nacional foi seu pai. Para ele foi muito improdutivo dizer que passaria a “motosserra” nos gastos públicos. Atualmente, o Uruguai tem um déficit de 4,3% do PIB e o senhor fala de políticas de choque. O que isso significa?

A situação econômica é muito complexa. Temos mais déficit do que na crise de 2002 (na ocasião foi de 3,8%). Estamos com um desemprego crescente, uma taxa de atividade em queda. As soluções são muito claras: ou se aumentam impostos, tarifas e combustíveis ou se gasta menos. A primeira opção é injusta, pois o governo é quem administra mal e é sempre o povo que paga, então o que temos a fazer é melhorar a gestão. Estou convencido de que se pode fazer economia significativa em pouco tempo, sendo mais eficiente, gastando melhor.

• Mas onde se vai parar de gastar?

No dia 8 de abril apresentaremos o programa do governo e lá diremos o que, quando, como e para quem. E vamos dizer às pessoas exatamente o quanto vamos economizar.

• A Frente Ampla fracassou?

O Partido Colorado lhes deixou o governo em 2005 com alguns problemas obviamente abertos pela crise de 2002, mas saneado economicamente. A isso devemos acrescentar a situação internacional de que desfrutavam, com os bons preços para a soja, o arroz e a madeira. Foram também 15 anos de blindagem política, já que sempre tiveram maiorias parlamentares. Além disso, governaram por um longo tempo com um enorme crédito popular. Hoje, há muita frustração e raiva. Melhorou alguma coisa? Os governos precisam ser avaliados de acordo com a liberdade das pessoas: se eles terminam e as pessoas são mais livres, isso era bom. Se termina e as pessoas estão mais dependentes, foi ruim. Este governo foi ruim.

• O sr. não votou a favor do casamento homossexual e da legalização do aborto, duas reformas fundamentais do governo Mujica. Reverteria essas políticas?

Não, porque não posso ter uma política de refundação. Acredito que é preciso ter políticas públicas para combater o aborto, mas não torná-lo ilegal. No que diz respeito ao casamento igualitário, eu havia apresentado um projeto de legalização das uniões civis entre pessoas do mesmo sexo.

• O sr. foi o primeiro legislador a introduzir um projeto que permitiu o cultivo próprio de maconha, mas, manifestou-se contra a legalização pelo governo de Mujica, entre outras coisas, porque não concorda que o Estado plante a droga e a venda em farmácias. O que faria com essa lei?

Meu projeto, apresentado em 2010, foi o primeiro da história da América Latina. Acredito em cultivo individual, mas não no sistema que esse governo adotou. As políticas de obtenção legal da substância foram acompanhadas por uma espécie de tolerância e minimização dos riscos. Isso estimula o consumo. Foi prometido que haveria campanhas de conscientização, mas nada foi feito. Os efeitos nocivos estão comprovados e o tráfico de drogas não diminuiu. Hoje temos gangues de drogas operando no Uruguai, algo que não acontecia antes.

• A venda seria revertida pelo Estado?

Eu não recuaria, mas lutaria mais contra o tráfico de drogas. A ideia de legalização era tirar o negócio dos narcotraficantes.

• A estrutura pela qual o Estado vende maconha registrou perdas de US$ 22 milhões. Como avalia isso?

Não, perder dinheiro, isso não! Isso vai mudar. O sistema tem de ser lucrativo ou neutro, mas sem perder dinheiro. Eu substituiria parte das vendas em farmácias por clubes de fumantes ou mais cultivo próprio.

• Por que o sr. acredita que a figura de Mujica é tão popular em outros países?

Porque ele é um esnobe. O mundo está tão distante de referências que, pelo simples fato de, supostamente, ter uma vida austera, provoca isso. Além disso, não ouvem seus discursos, nem conhecem ou sofrem com suas ações (Procurado pelo jornal O Estado de São Paulo, Mujica não respondeu às críticas).

• O sr. não teve um relacionamento muito bom com Vázquez, até o presidente disse que seu slogan e suas propostas eram fáceis e voláteis como “bolhas de sabão”.

É verdade, o presidente optou por não ter um relacionamento comigo. Pedi três audiências, telefonei para ele e nenhuma das três vezes tive sorte. Imagino e quero acreditar que ele seja um presidente apegado às instituições, e em uma eventual transição, todos vão se relacionar em bons termos.

• O sr. representa um partido histórico tradicional, conservador. Considera-se de direita?

Acho difícil me classificar. Promover uma lei de cultivo de maconha é de esquerda ou de direita? A lei da fertilização assistida, que eu também promovi, é de esquerda ou de direita? Manter os antecedentes de menores depois que completarem os 18 anos, é de esquerda ou de direita? A verdade é que me dedico a fazer política, a interpretar as sensibilidades nacionais.

• Mas o sr. comemora que a região passe de ser governada pela esquerda a ser dirigida pela direita?

O que eu não gosto é dos populismos. Aqueles que fazem uma grande nação são os habitantes. Os políticos apenas lhes dão ferramentas e oportunidades. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Autor: Carlos Tapia, especial para AE; tradução de Claudia Bozzo
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