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Morre Bibi Ferreira, diva do musical brasileiro, aos 96 anos

13/02/2019
Morre Bibi Ferreira, diva do musical brasileiro, aos 96 anos

Bibi Ferreira

Maior diva do teatro musical brasileiro, a atriz Bibi Ferreira morreu na tarde desta quarta-feira (13), vítima de parada cardíaca. Ela estava em sua casa, no Flamengo, quando passou mal. A informação foi confirmada pela filha dela, Teresa Cristina, fruto do relacionamento com Armando Carlos Magno — segundo de seus seis maridos.

A vida e trajetória de Bibi Ferreira 

— Ela partiu às 13h, serenamente — contou o empresário e amigo, Nilson Raman. — Passou seus últimos dias em casa, dormindo na maior parte do tempo. Hoje, reclamou de falta de ar e, em seguida, se constatou o óbito. Bibi foi protagonista absoluta do seu palco e da sua vida. Foi muito lindo o que ela fez.

Bibi Ferreira nasceu num tempo em que ser ator não era status social aceitável nem sequer profissão regulamentada. Por ser filha da bailarina espanhola Aída Izquierdo e do ator Procópio Ferreira, um dos responsáveis pela profissionalização do ofício no país, viveu e contribuiu para a passagem do então sub-ofício a profissão capaz de transformar artistas em divas.

Logo, Bibi se tornou uma delas. Ou melhor, a maior delas no teatro musical brasileiro. Atuou com firmeza até seus 96 anos, como um mito vivo, em atividade:

— Tenho consciência de tudo o que eu fiz, tudo — disse em entrevista ao GLOBO, em janeiro de 2018. — Embora tenha começado profissionalmente com meu pai, entre 18 e 19 anos, lembro de dançar no Municipal do Rio, com 6 anos, de fazer o filme “Cidade mulher” (de Humberto Mauro) quando tinha 13, de ser ensaiada pelo Noel Rosa… Então, são quase 90 anos no palco. E continuo fazendo.

Quando lhe perguntavam sobre aposentadoria, Bibi respondia:

— Eu… me aposentar? Olha bem! Não penso nisso por três razões: estou muito bem, ia ficar tudo muito triste, e preciso trabalhar — disse ao completar 90 anos.

Estreia no palco aos 24 dias de vida

Apelidada de Bibi, Abigail Izquierdo Ferreira teria nascido em 1º de junho de 1922, no Rio, porém duas datas aparecem como referência de seu nascimento: seu pai falava em 4 de junho, e na certidão de nascimento consta 10 de junho. Por não saber a data ao certo, a atriz passou a comemorar seu aniversário a cada dia 1º.

Seus pais, tios e avós viveram profundamente ligados ao circo e ao teatro. E foi no picadeiro familiar dos Irmãos Queirolo que Bibi surgiu pela primeira vez em cena, aos 24 dias, nos braços da madrinha, a atriz Abigail Maia. Substituiu uma boneca de pano que havia sido perdida e que era utilizada numa cena da peça “Manhãs de sol”, de Oduvaldo Vianna, pai do também dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho. Depois, aos 3 anos, Bibi passou a animar os entreatos das peças da Companhia Velasco, que sua mãe passou a integrar após separar-se de Procópio. Com uma infância marcada por estudos de ópera, piano e violino, tendo participado do Corpo de Baile do Municipal dos 7 aos 14 anos, Bibi faz sua estreia profissional junto ao pai, em 1941, quando, aos 18 anos, atuou em “La Locandiera”, de Carlo Goldoni.

Sempre precoce, no ano seguinte montou a sua própria companhia, que absorveu grandes nomes do teatro, como as atrizes Cacilda Becker e Maria Della Costa, além da diretora francesa Henriette Morineau, influência que levou Bibi a se tornar uma das primeiras mulheres a dirigir teatro no país — em sua estreia na função, ela guiou o próprio pai em cena, na peça “Fizemos divórcio” (1947), um sucesso estrondoso.

Inspiração para Falabella e Marília Pêra

Foi Bibi, também, quem dirigiu, em 1954, a estreia de “Senhora dos Afogados”, de Nelson Rodrigues, e que durante os anos 1960 se tornou a primeira grande atriz de teatro musical brasileiro, como a estrela maior de produções como “My fair lady” (1964) e “Alô, Dolly” (1965), em que atuou e dirigiu. O impacto destas produções e a influência de Bibi atravessaram décadas e diferentes gerações, transformando o destino de numerosos artistas, entre nomes como Marília Pêra e Miguel Falabella, por exemplo, que cinco décadas mais tarde recriaram juntos “Alô, Dolly” (2012). Falabella tinha 8 anos quando ganhou de aniversário um convite para ver Bibi brilhar na primeira versão brasileira do musical, que havia arrebatado a Broadway em 1964, com dez prêmios Tony.

— Peguei o 328 e lá estava eu na matinê do “Alô, Dolly!” com o meu cabelo de Príncipe Danilo — recorda Falabella. — Lembro da magia das músicas do Jerry Herman transformando o caminho de volta para casa. De repente, a Avenida Brasil era o lugar mais lindo do mundo. “Alô, Dolly!” representa um momento de transformação radical na minha vida.

A partir daquela tarde, Falabella tinha encontrado a sua função no mundo:

— Cheguei à Ilha do Governador alucinado, sabendo que iria fazer aquilo para o resto da minha vida. Nunca mais pensei em ser outra coisa.

Com 18 anos à época, Marília havia acabado de fazer uma ponta como bailarina em “My fair lady”, protagonizado por Bibi, e quando soube das audições para “Alô, Dolly!” se inscreveu, mas acabou não entrando.

— Tinha visto a Bibi fazer “My fair lady” um milhão de vezes, e também fui vê-la em “Alô, Dolly!”, mas não passei porque acho que não fiz um bom teste — disse Marília em 2012.

Essas montagens marcaram a chegada dos grandes musicais da Broadway ao Brasil. Nessa mesma época, no entanto, o mundo de magia, beleza e divertimento dos musicais foi atravessado e desafinado pela chegada da ditadura militar, em abril de 1964. No mesmo ano, a vida de Bibi também seria transformada, com a chegada ao Rio do dramaturgo e ativista paraibano Paulo Pontes. Foi com ele que Bibi estabeleceu uma das mais intensas parcerias amorosas e artísticas da sua vida, que resultou em obras como “Brasileiro, profissão: esperança” (1970), de Pontes e Vianinha, com Ítalo Rossi e Maria Bethânia em cena; a versão brasileira para o musical “O Homem de La Mancha”, com letras de Chico Buarque, em que contracenou com Grande Otelo e Paulo Autran; e finalmente a criação de “Gota d’água” (1975), de Paulo Pontes e Chico Buarque, a partir de “Medeia”, de Eurípedes, considerado até hoje o maior trabalho de Bibi como atriz.

— Foi o papel mais difícil da minha carreira, mas foi a melhor coisa que fiz na minha vida. E é o melhor trabalho de dramaturgia do teatro nacional — disse ela ao GLOBO, em 2012.

Com a morte de Paulo, Bibi se afastou dos palcos e viveu oito longos anos de luto artístico. O retorno seria com um dos maiores sucessos da sua carreira, “Piaf — A vida de uma estrela”, em que interpretava histórias e canções da mítica cantora francesa. Mas não foi fácil convencer Bibi a viver Edith Piaf. A brasileira temia criar um espetáculo lamurioso, e que a triste história poderia acentuar a sua dor, até que compreendeu que Piaf não era um mar de tristezas, que havia divertimento também, comédia e tragédia unidas, como em todo bom teatro. “Piaf” lhe rendeu inúmeros prêmios, incluindo o Molière e o Mambembe, e uma condecoração do governo francês.

— Teatro é conseguir sensibilizar as pessoas, através do filtro das emoções, pela inteligência, pela lágrima, pelo riso — disse Bibi ao GLOBO, em 1983, durante uma entrevista concedida à época da estreia de “Piaf — a vida de uma estrela”.

Nos anos posteriores, criou outra série de espetáculos emblemáticos, como “Bibi in concert” (1991), comemorativo dos 50 anos de carreira, “Bibi in concert II” (1993), “Bibi vive Amália” (2001), a partir do repertório da fadista portuguesa Amália Rodrigues, até que em 2016 estreou “Bibi Ferreira canta repertório de Sinatra”. No mesmo ano brilhou em “4x Bibi”, para celebrar 75 anos de carreira, interpretando sucessos de Amália Rodrigues, Carlos Gardel e Edith Piaf. Também nos anos 2000, foi homenageada pela Escola de Samba Unidos de Viradouro. Com o enredo “Viradouro canta e conta Bibi — Uma homenagem ao teatro brasileiro” (2003), a atriz desfilou na Sapucaí como destaque no último carro alegórico.

Em 2018, poucos meses antes de morrer, a atriz-cantora que viveu dezenas de papéis foi convertida, ela própria, em personagem teatral. Criado em sua homenagem, o espetáculo “Bibi, uma vida em musical” lhe deu a oportunidade de se ver em cena e rever as diferentes fases de seus 77 anos de carreira. A homenageada, acostumada a receber prêmios e honrarias, afirmou que o musical foi um dos grandes presentes já recebidos em vida, justamente por se tratar de um tributo em forma teatral e musical, suas grandes paixões.

— Sinto-me muito, muito lisonjeada — disse à época. — Fico feliz em perceber que as pessoas realmente acompanharam a minha história, e que a minha carreira se destaca a ponto de ser contada.