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A rapadura

18/11/2018
A rapadura

Wanderley Gomes Sardinha, hoje, coronel reformado do Exército Brasileiro, excelente historiador, nasceu na bela cidade de Lorena no Vale do Paraíba em São Paulo. No longínquo ano de 1956, com 16 anos, submeteu-se ao difícil concurso e ingressou na Escola Preparatória de Cadetes do Exército em Fortaleza; onde passou três anos estudando, aprendendo a dureza da vida militar. Ficou encantado com o Nordeste, as praias bonitas, a amabilidade do povo; como bom glutão apaixonou-se pela comida típica da região. No final de semana almoçava na casa de colegas cearenses, carne de sol, macaxeira, frutas, mangaba, siriguela, e principalmente a rapadura, com um prazer divino dava dentadas nas barras douradas deixando os pedaços derreterem-se no céu da boca. Seu café predileto era inhame com mel de rapadura.

Final dos anos 60 Wanderley, promovido a Capitão, foi servir em sua terra no 5º Regimento de Infantaria de Lorena, cidade vizinha à Piquete onde seu colega de turma, cearense, Capitão José Rocha servia na Fabrica de Material Bélico. Os dois capitães sempre se encontravam. No Brasil era época de repressão e terrorismo. Principalmente em São Paulo onde aconteceram vários ataques terroristas a quartéis do Exército e o caso marcante do Capitão Lamarca, amigo e contemporâneo dos dois capitães na Academia Militar das Agulhas Negras..

Rocha depois de uma viagem de férias ao Ceará, como sempre, trouxe barras das deliciosas rapaduras para o amigo. No início da tarde de uma quarta-feira, não havia expediente no 5º RI, o capitão Rocha parou o carro em frente ao quartel, chamou o soldado sentinela e entregou um pacote de rapaduras embrulhadas em palha de milho, envolta em papel de jornal. Pediu para ser entregue ao Capitão Wanderley.

Nesse momento o tenente, oficial de dia, observava de sua janela, notou quando alguém entregou um embrulho à sentinela, deu partida e acelerou o carro cantando o pneu.

Imediatamente o tenente deixou a sala correndo, gritou ordenando ao soldado para colocar o embrulho no chão do pátio, mandou tocar alarme geral. Nervoso, gritava: Cuidado, é uma bomba! É uma bomba!

Poucos soldados que estavam no quartel, bem treinados, tomaram posições estratégicas, ficaram protegidos atrás das colunas e paredes. Ao longe a ”bomba”, imóvel, soberba e inatingível no chão do pátio.

O quarteirão foi interditado, o trânsito desviado para outras ruas e impedindo qualquer pessoa aproximar-se. O embrulho em papel jornal, incólume, solitário, amedrontava os soldados e a população que espreitava das varandas nos prédios da vizinhança.

Logo a mídia tomou conhecimento. Os jornais da região enviaram repórteres. As televisões de São Paulo tomaram o caminho de Lorena. .Jornalistas e fotógrafos penduravam em prédios, fotografando, ao longe, a bomba. Aguardavam um sargento sapador especialista em desarmar bombas, vindo da cidade de São Paulo..

Nesse clima de tensão, ignorando o fato, o Capitão Wanderley entrou calmamente na cidade em seu fusquinha branco, depois de uma relaxante pescaria. Logo notou o movimento estranho nos arredores do quartel.

Os soldados que faziam o controle do trânsito contaram o ocorrido, deixando o capitão passar. Wanderley parou o carro na entrada do 5º RI, ao olhar a suposta bomba, reconheceu de imediato ser um abençoado pacote de rapadura trazido pelo amigo Capitão Rocha.

Contou ao tenente sua versão sobre o pacote, a suposta bomba de terrorista. O Tenente nessa altura não admitia outra hipótese, era uma bomba.

Os soldados abrigados atrás das colunas ficaram apavorados ao perceberem o Capitão Wanderley caminhar solitário e indefeso, em direção á bomba.

Wanderley, com água na boca, pensava na deliciosa rapadura. Parou em frente ao embrulho. A expectativa e o silêncio tomavam conta da multidão, dentro e fora do quartel, acompanhavam a insensatez do capitão.

Num gesto contínuo Wanderley abaixou-se, de cócoras, segurou o pacote, abrindo pelos lados, tirando jornal e palhas de bananeiras até aparecer uma bonita barra dourada da rapadura.

Com os dedos indicador e mindinho, Wanderley levou uma barra à boca, deu uma gostosa dentada quebrando um pedaço de rapadura. Ato contínuo colocou o pacote nas axilas, caminhando em direção ao portão. Mastigava carinhosamente a rapadura, lambendo os lábios diante de uma enorme plateia incrédula e boquiaberta. Estavam esperando uma tremenda explosão.

Naquela época de terrorismo e repressão, a paranoia era contagiante.