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Em ‘O Artista da Faca’, Welsh mostra a oscilação de personalidade de Begbie

15/09/2018

O escritor escocês Irvine Welsh parece ter uma fixação por seu personagem Francis Begbie – violento, ele surgiu em Trainspotting (de 1993 e cuja versão cinematográfica tornou Welsh mundialmente conhecido), no qual revelou sua psicopatia que o levou à cadeia. Em Pornô (2002), Begbie está prestes a sair da prisão e tem como ideia fixa arrancar a pele de Mark Renton (vivido por Ewan MacGregor no cinema). Finalmente, em O Artista da Faca (2016), que a Rocco lança agora no Brasil, ele parece estar recuperado.

“É mais fácil escrever sobre um personagem interessante”, explica Welsh ao jornal “O Estado de s. Paulo” a nova fase de Begbie. De fato, no livro, o ex-psicopata (vivido por Robert Carlyle na tela grande) parece estar recuperado: agora vivendo na Califórnia, ele se tornou um renomado pintor e escultor, casado com uma mulher linda e rica e pai de duas meninas. Detalhe: Begbie agora atende pelo nome de Jim Francis.

Sua agressividade ainda latente é canalizada em esculturas que retratam celebridades mutiladas. “Na argila ou em carne viva, meu talento era ferir pessoas”, afirma. A vida cor de rosa torna-se cinzenta, porém, com a chegada de dois homens que ameaçam sua família. Mais: Francis/Begbie é obrigado a voltar a Edimburgo, onde seu filho mais velho foi assassinado. Só lhe resta retomar o espírito belicoso e se preparar para vingança – de preferência, da forma mais sangrenta possível.

Welsh demonstra que não perdeu o fôlego. Além das cenas pesadas e do diálogo virulento, ele cria situações hilariantes, revelando ainda que a crise existencial persiste. E, dessa vez, ele utiliza essa bipolaridade em uma narrativa que se aproxima do suspense. Afinal, entre Francis e Begbie, entre a redenção e o antigo gosto pela violência, o personagem oscila e, com isso, carrega a atenção do leitor consigo. Welsh também revela sua sensibilidade apurada para detectar as rachaduras da sociedade moderna, em que o hedonismo se confronta com o egoísmo. E, finalmente, como a descoberta da arte pode salvar os homens de seus atos violentos. Por e-mail, Welsh respondeu às seguintes questões.

No livro, Begbie aprendeu a se controlar por meio da arte, mas ainda carrega consigo sua raiva, violência e sadismo. Ele não podia continuar como era, mas essa sua nova complexidade não o tornou mais difícil para você?

Na verdade, não. É mais fácil escrever sobre um personagem mais interessante. Não dava para manter o interesse em Begbie apenas com ele entrando e saindo da cadeia e criando confusão.

Você é disléxico, daí seu retrato perfeito da dislexia de Begbie. Você enfrentou problemas por ser disléxico? E que aspectos da dislexia achou mais importantes para usar no romance?

A dislexia afetou minha leitura quando criança. Como não conseguia acompanhar os outros alunos, fui ficando para trás. Eu também era dispráxico – tinha dificuldades em reconhecer símbolos, e isso me fazia ruim em matemática. Quis transportar para o personagem toda essa frustração, humilhação e raiva. “Sei que não sou burro, mas não consigo entender isso…”

Por que sua obsessão com Ulisses, de Joyce? De que modo esse livro estimula um escritor?

Gosto do livro porque, em cada leitura, ele me mostra alguma coisa mais. É preciso ler cada vez de um modo diferente.

Como bom observador da sociedade moderna, o que você acha do movimento #MeToo? As velhas estruturas foram finalmente quebradas? É essa a revolução que você queria?

Todos deveríamos estar unidos na condenação ao abuso sexual. Muitas mulheres e homens sofreram demais com isso. Agora que nosso modo de produção não está mais tão sujeito a arbitrariedades, ficou mais difícil para as elites justificarem autoritarismo e abusos. Isso é um avanço.

Não é estranho que tantas mulheres tenham votado em Trump na última eleição?

Estranho por quê? Mulheres podem ser tão reacionárias quanto homens. Muitas assumiram o sistema patriarcal que as beneficiou – não como mulheres, mas como parte de uma elite étnica ou de classe. Um operário branco pode virar picadinho ao defender as elites numa guerra insana, mas uma mulher da classe alta não passará por tal horror.

É possível dizer que os Estados Unidos de Donald Trump lembram um pouco a Grã-Bretanha do Brexit?

Ou a Turquia, a Hungria, a Ucrânia, etc. É um fenômeno global provavelmente inevitável após 30 anos de neoliberalismo, de desmantelamento da esquerda e de conluio do centro na promoção da desigualdade e do racismo. A tônica varia de país para país, mas a mensagem é a mesma.

No dia 5, The New York Times publicou na página de opinião uma “bomba” de autoria de um anônimo alto funcionário da Casa Branca descrevendo esforços de membros do governo para refrear algumas das piores tendências e ideias do presidente Trump. Você gostaria de ter escrito esse artigo?

Para começar, eu jamais trabalharia para esse imbecil.

O ARTISTA DA FACA
Autor: Irvine Welsh
Tradução: Ryta Vinagre
Editora: Rocco (256 págs., R$ 44,90 versão impressa, R$ 29,90 e-book)
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Autor: Ubiratan Brasil
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