Variedades

‘Café com Canela’ entrega afeto na representatividade

25/08/2018

Ary Rosa e Glenda Nicácio são mineiros radicados na Bahia – no Recôncavo. Ali têm a sua produtora, a Rosza Filmes, ali ambientaram seu longa de estreia, Café com Canela. Há um Recôncavo mitificado e alienado no inconsciente coletivo – um lugar de sensualidade e alegria permanentes. Café com Canela tem alegria, tem sensualidade, mas acrescenta outros elementos à história que conta. A dor da perda, o sofrimento, que não costumam ser valorizados nessa Bahia de fantasia. O filme venceu três prêmios no Festival de Brasília do ano passado – melhor roteiro, melhor filme pelo júri popular e melhor atriz para Valdinéia Soriano, do Olodum.

Existem características peculiares, que são do Recôncavo. Transparecem na fala, na ginga dos corpos. Ary admite – “Pegava um caderninho e ia para a lotérica. Anotava o que as pessoas diziam, faziam. Virei baiano pela observação. A feira também permite essa riqueza de olhar, observar, mas a lotérica é especial. É um espaço do sonho, quando as pessoas apostam. É o lugar onde se podem pagar as dívidas, e aí sempre surge alguma falação sobre as dificuldades da vida. E é muito divertido quando alguém chega tentando furar a fila e provoca confusão.” Antes de virar longa premiado, Café com Canela foi um curta de Ary Rosa – lá atrás, em 2011.

O curta nasceu de uma imagem – uma pessoa mais velha aprendendo a andar de bicicleta. “Imagina só, a gente aprende quando criança e nunca esquece. Agora pensa em alguém mais velho, um idoso. É todo um novo mundo de possibilidades que se abre. As pessoas perceberam a potência do curta e começaram a me pilhar – dá longa. Comecei a escrever e a Glenda, que é uma grande leitora, foi colocando sua marca. Terminamos em 2013 e decidimos dirigir juntos. Ela é a mulher da minha vida – minha companheira artística.” (Para outros compartimentos do afeto, cada um tem história própria.) Desde o início, a ideia sempre foi colocar o Recôncavo na tela – com sua ancestralidade e seu modo de superar a dor, reinventando a felicidade. “Uma inspiração continua e cotidiana.”

O cinema trabalha com representatividade – negros, mulheres, gays. Todo mundo está representado em Café com Canela. “A Glenda é mulher e diretora negra. Quantas existem? Poucas. Temos uma protagonista negra – a Glenda foi pesquisar e, em 2016, quando iniciamos de fato a produção, apenas 0,4% de filmes brasileiros tinham negras como protagonistas. Olha o absurdo em relação à quantidade de mulheres negras desse País.” Como recorte da vida baiana, Café com Canela entrelaça diversas histórias. O eixo é fornecido pela relação entre Margarida (Valdinéia) e Violeta. Margarida perdeu o filho e entrou num mergulho interior que a afastou de tudo e todos. Perdeu o marido, fechou-se na dor. Violeta, que foi sua aluna, assume quase como missão retirar Margarida dessa tristeza infinita que a consome. Quer trazê-la de volta à vida.

Ary Rosa assinala a novidade – “Sempre houve carência de filmes com personagens negras cidadãs, mostradas na sua plenitude e o que hoje se verifica é que há todo um segmento social exigindo esses filmes.
Mulheres e negros querem ver-se retratados como são – integrantes da sociedade brasileira.” O mesmo pode-se dizer dos gays, e há um fabuloso no filme – Ivan, que perdeu o companheiro. Ivan é interpretado por Babu Santana, um ator conhecido por papéis fortes, quando não violentos. Como surgiu a ideia de colocar um ator que não seria a escolha natural num papel desses? “Foi o próprio Babu que se escalou”, diz o (co)diretor.

“Estava vendo uma entrevista dele no programa da Marília Gabriela, e o assunto era justamente esse. Babu como representação do negro bandido, f… E eu ali vendo descobri um outro cara – sensível, amoroso, falando dos filhos. Chamei a Glenda para ver comigo. A Marília perguntou o que ele gostaria de fazer, até para mudar sua imagem? Um gay! Nos olhamos e, de cara, pensamos que poderia ser o nosso Ivan.” Todo o filme foge ao estereótipo, e o Ivan também. Nada do gay caricato. Todas as histórias do filme visam a tornar naturais esses personagens e relações. A proposta sempre foi de afeto, e o público entendeu. “Estamos, Glenda e eu, e todo o elenco, muito felizes.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Autor: Luiz Carlos Merten
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