Variedades

Bia Lessa encena ‘Pi’, peça que traduz insatisfações atuais

28/05/2018

A primeira surpresa, o espectador tem logo ao entrar na sala de espetáculo – o enorme chão (onde futuramente estará um palco) está coberto por aproximadamente 11 mil peças de roupa. “Cada uma tem sua própria história e essa vivência será revelada quando algumas peças forem vestidas pelos atores”, explica Bia Lessa, diretora de “Pi”, espetáculo que, se não conta uma história linear, costura vários momentos que, unidos, traduzem uma insatisfação. “Não é uma trama convencional, mas um conjunto de cenas cuja finalidade é mostrar uma tomada de posição: não podemos simplesmente ficar parados e acompanhar o que está acontecendo no País. Os artistas não podem se calar para evitar o avanço de forças reacionárias. Por isso, a peça não poderia acontecer em um teatro arrumado.”

De fato, “Pi” (ou Panorâmica Insana) estreia na sexta-feira, 1º, em um espaço inacabado, o Teatro Novo. Encravado em uma galeria no bairro de Vila Mariana, em São Paulo, é o antigo Teatro Dias Gomes que, durante várias temporadas, abrigou espetáculos do menestrel Oswaldo Montenegro. Após anos fechado, será reaberto em outubro, depois de uma reforma que foi momentaneamente interrompida para abrigar o trabalho de Bia Lessa. “Precisávamos de um espaço que representasse o ‘entre’ – o intervalo entre as ruínas do que um dia foi esse teatro e o futuro de como ficará esse lugar ao final da reforma”, conta a encenadora. “Assim é o espetáculo, que busca dialogar com o momento, marcado por um impasse e, dependendo das nossas atitudes, viveremos entre um futuro no qual a humanidade poderá superar suas questões estruturais, ou um futuro desastroso.”

Para traduzir essa angústia, Bia conta com um elenco formado por Claudia Abreu, Leandra Leal, Luiz Henrique Nogueira e Rodrigo Pandolfo, atores de diferentes formações e experiências. Juntos, eles vivem 150 personagens de diferentes nacionalidades. O espetáculo nasceu do inconformismo de Claudia e Nogueira. “Queríamos um texto nacional que tocasse em assuntos que provocassem reflexões, que traduzisse nossa sensação de perplexidade, de impotência para onde vamos”, explica a atriz. Juntos, eles convidaram os dramaturgos Julia Spadaccini e Jô Bilac, que rascunharam as primeiras cenas.

O trabalho tomou o rumo atual quando os atores convidaram Bia Lessa para encenar – ela vinha da experiência de montar “Grande Sertão: Veredas”, um dos mais poderosos espetáculos do ano passado e cuja essência se aproxima da de “Pi”: ambos buscam mostrar um momento de transcendência de um estado arcaico para outro mais evoluído. “É como se um fosse o negativo do outro”, observa Bia, que resolveu transformar o período de ensaios em um processo criativo, ou seja, as improvisações bem sucedidas foram incorporadas à peça. “Bia pediu para que arriscássemos sem medo do ridículo. Assim, não criamos personagens, mas momentos”, completa Claudia.

A equipe de criadores foi completada pelo escritor André Sant’Anna, que criou, por exemplo, uma cena que se passa em um lixão. O texto foi engrossando com citações de Franz Kafka e Paul Auster. “Aos poucos, encontramos os personagens e suas personalidades”, conta Pandolfo. “Aqui, temos uma voz, temos uma reflexão muito forte que dialoga com a loucura.”

Para surtir o efeito ideal, Bia sabia que um teatro convencional não era o melhor espaço. Assim, as produtoras Selma Morente e Célia Forte vasculharam São Paulo até encontrarem o Teatro Novo em reforma. Seu novo administrador, Warney Paulo, comprou a ideia e aceitou interromper o restauro. O que Bia encontrou foi um enorme espaço aberto, de 23 x 20 m, onde futuramente haverá um palco e uma plateia. Hoje, porém, o que se vê apenas é sua carcaça.

“Encenar em um teatro em ruínas é um ato político, um ato de bravura”, acredita Leandra Leal. “Isso nos impõe um forte processo de trabalho, no qual nos deparamos com o limite. Quando se sente pressionada, a pessoa ou dá um passo adiante e avança ou se encolhe e não sai da situação em que está.” Esse é o ponto chave do espetáculo, a força matriz que move o pensamento e a criação de Bia Lessa e seu elenco: o impasse em que vive a sociedade brasileira e a importância em dar o próximo e decisivo passo.

“Certamente é o espetáculo mais político da Bia, mesmo que o texto não faça nenhuma referência explícita”, observa Luiz Henrique Nogueira. Ele e os demais atores vão utilizar microfones durante a encenação. Mais que projetar a voz em um espaço grande e aberto, o aparelho servirá para manipular eletronicamente suas falas. “Isso vai permitir a criação de ecos e metalização, o que dará a ideia de fúria e de discurso oco, vazio”, conta Bia que, para revelar como a sociedade atual abraçou um consumo desenfreado, também vai projetar em tempo real números distintos, mas alarmantes, como o de assassinatos, consumo de água, estupros, nascimentos. “São narrações do real”, diz. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Autor: Ubiratan Brasil
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