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Socorrinho

04/12/2017
Socorrinho

Idosos não perdem a memória, às vezes ficam esquecidos. O fascinante do ser humano é que detalhes de um passado mais distante se perpetuam na mente. Programei minha memória recordar apenas coisas boas, as ruins apaguei-as, para ser feliz.

Eu era um menino de sete anos, ano da graça de 1947, morava na Avenida da Paz. No último dia de novembro minha mãe deu um presente à família, nasceu Socorrinho, última dos cinco filhos. Alguém apareceu com a criancinha nos braços para mostrá-la aos irmãos. Eu fiquei curioso ao vê-la chorando, emocionei-me, fiquei feliz, senti uma premonição, aquela menina chorona tornou-se uma das figuras mais importantes de minha existência.

Nossa infância na praia da Avenida e nas cercanias do riacho Salgadinho foi de liberdade e alegria, percorria toda redondeza pescando ou catando caranguejo. Meus pais criaram os filhos com sabedoria e generosidade, entretanto, menino é malvado, Socorrinho devia ter quatro ou cinco anos, eu quase rapaz, pegava o goiamum pelo casco, as patas do bicho enormes abertas nervosas, eu amedrontava os mais novos achegando o caranguejo brabo perto do rosto dos meninos, Socorrinho foi vítima. Até hoje ela tem pavor a caranguejo, sequer sabe o gosto de uma saborosa caranguejada.

Ainda jovem passei no concurso e fui estudar na Escola Militar, peguei um trem em Maceió até o Recife de onde viajei para Fortaleza. Durante 12 horas o trem correu entre pequenos morros, canaviais verdes fazendo um horizonte ondulado com o céu azul, me vinham lembranças, meus pais, meus irmãos. Disfarçadamente chorei enquanto o “Trem de Alagoas” cantava, “vou danado pra Catende com vontade de chegar”.

Durante o tempo que estive no Exército morei 13 anos pelo Brasil afora, nunca deixando de passar as férias em Maceió. Certa vez Socorrinho me confidenciou, estava namorando e me apresentou o Clailton, a partir desse dia ganhei outro irmão. Está gravada em minha mente a figura de Clailton na varanda de nossa casa, tocando violão, cantando: “Oh cachaça amiga, não há quem me diga que não tens valor… e de saudade eu morro, vem em meu SOCORRO mais outra lapada”.
Em 1967, promovido a capitão fui classificado para servir no 20º Batalhão de Caçadores, voltei a morar nas Alagoas, que felicidade. Nada mais queria na vida; solteiro, morando na casa dos pais com comida, roupa lavada e o carinho dos pais e irmãos; de quebra, uma Maceió bonita, festiva, eu vivia no paraíso. Nessa época, dos cinco irmãos, apenas eu e Socorrinho morávamos na casa do General e Dona Zeca. Foi uma fase bonita, alegre e feliz de minha existência. Socorrinho era minha companheira, minha amiga para toda programação, festas, casamentos, aniversários, Zinga Bar. Às vezes eu paquerava suas amigas, ela dizia não gostar, preocupada com possível sujeira de minha parte com as amigas, porém, no fundo eu sabia, ela tinha maior orgulho do irmão.

Nunca tive desentendimento com Socorrinho. Aliás, tive uma única discussão, não lembro o motivo. Dia seguinte, ela emburrada não falou comigo, raiva mesmo, ranzinza. Eu pensei, ela tinha um pouco de razão. Socorrinho não só perdoou, como me abraçou emocionada quando ao entrar em seu quarto a cama estava coberta de rosas. Foi minha maneira de pedir desculpas.

Em 1970 me casei com Vânia, amada companheira de 47 anos, logo depois Socorrinho casou-se com Clailton, seu primeiro e único namorado. Socorrinho tornou-se o esteio na família. Sempre foi a primeira chegar aos problemas nas dificuldades da família, nos piores momentos, na hora da morte, como também na hora da alegria. Ela herdou de Dona Zeca o amor às festas, à família, ao natal, ao ano novo. Sua casa sempre cheia, Clailton ainda canta ao violão nos dias de festa.
Hoje, aquela cena ainda em minha mente, a criancinha recém-nascida nos braços não sei de quem, sendo mostrada aos irmãos está fazendo 70 anos. Desde aquele momento veio nossa bem querência, nossa cumplicidade, amizade. Sempre tivemos um apoio mútuo e forte, hoje e até o final de nossas vidas.