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A história de Artemisia Gentileschi, a pintora violentada que se vingou fazendo arte no século 17

14/01/2017
A história de Artemisia Gentileschi, a pintora violentada que se vingou fazendo arte no século 17

”Tancou o quarto a chave e depois me jogou sobre a cama, imobilizando-me com uma mão sobre meu peito e colocando um dos joelhos entre minhas coxas para que não pudesse fechá-las. E levantou minhas roupas, algo que lhe deu muito trabalho. Pôs um pano em minha boca para que não gritasse. Eu arranhei seu rosto e arranquei seus cabelos.”

Esse é o relato de um estupro ocorrido há quatro séculos, mais especificamente no ano de 1611.

A vítima era a italiana Artemisia Gentileschi, uma artista cujo talento pode ser comprovado pelo fato de ter sido a primeira mulher aceita na Academia de Belas Artes de Florença, na Itália, a mesma pela qual passou Michelangelo.

Além de ter sido estuprada, ela teve de aguentar ver o agressor livre e sua denúncia questionada abertamente.

Para piorar, Artemisia sofreu com a indiferença e a rejeição do mundo artístico de sua época por ser mulher, e passou pela humilhação de ver a autoria de seus quadros atribuída a seu pai e outros artistas masculinos.

Mesmo depois de morta, durante séculos foi considerada apenas uma curiosidade, uma raridade exótica e menor na história da arte.

Artemisia aprendeu a pintar no ateliê do pai (Foto: The Metropolitan Museum of Art)

Artemisia aprendeu a pintar no ateliê do pai (Foto: The Metropolitan Museum of Art)

Demorou muito para que seu valor artístico fosse reconhecido. E apenas na década de 1970 Artemisia se tornou um símbolo do femininsmo.

Em novembro do ano passado, o Museu de Roma abriu uma exposição dedicada somente à artista italiana – a mostra termina em maio.

Artemisia e seu tempo reúne quase 100 quadros pertencentes a alguns dos mais prestigiados museus do mundo, e por meio deles é possível revisitar a vida e o trabalho da artista e alguns de seus contemporâneos, incluindo seu pai, Orazio, e outros pintores que trabalhavam na capital italiana no século 17, como Guido Cagnacci, Simon Vouet e Giovanni Baglione.

 

Ônus da prova

 

Nascida em Roma, em 1593, Artemisia era a primogênita e a única mulher entre os quatro filhos de Orazio Gentileschi.

Aprendeu a pintar no ateliê do pai, influenciada pelo naturalismo de Caravaggio (a quem, dizem, teria conhecido pessoalmente), em especial sua dramaticidade e seus fortes contrastes cromáticos.

Agressor da artista pôde escolher entre prisão e exílio (Foto: Museo e Real Bosco di Capodimonte )

Agressor da artista pôde escolher entre prisão e exílio (Foto: Museo e Real Bosco di Capodimonte )

Roma passava por um extenso processo de transformação urbana que atraía para a cidade inúmeros artistas em busca de trabalho.

Foi o caso de Agostino Tassi, um pintor especializado em paisagens e com fama de brigão. Ele e o pai de Artemísia foram contratados para fazer os afrescos do Cassino das Musas e do Palácio Rospigliosi.

Os dois ficaram amigos e Orazio abriu as portas de sua cara para Tassi, que se aproveitou para estuprar Artemisia, na ocasião com 18 anos. Ela demorou um ano para ter coragem de denunciá-lo.

Esse tempo fez com que a opinião pública se voltasse contra ela, com muitos concluindo que o episódio tivesse sido uma relação consensual.

Ainda assim, Tassi foi condenado em 27 de novembro de 1612. Só que o juiz lhe deu a chance de escolher entre uma sentença de cinco anos de trabalhos forçados ou a deixar Roma.

O pintor, claro, optou pelo exílio.

 

Casamento

 

Orazio mal esperou o escândalo esfriar para organizar um casamento para que Artemisia “recuperasse sua dignidade aos olhos da sociedade”.

Em 29 de novembro, apenas dois dias depois da condenação de Tassi, a filha se casou com o pintor Pierantonio Stiattesi e se mudou para Florença.

Artemisia já tinha começado a pintar figuras femininas fortes, inspirada tanto pela Bíblia quanto pela mitologia, mas com uma nova perspectiva: a feminina.

Em 1610, por exemplo, pintara Susana e os Velhos, quadro que se baseia no relato da parábola de Susana – uma mulher casa assediada sexualmente por dois senhores e que foi acusada de adultério quando se recusou a ter relações com eles. Segundo o escrito bíblico, Susana só escapou da morte por apedrejamento por intervenção do profeta Daniel.

A beleza do quadro fez com que muitos considerassem que a artista, então com 17 anos, não o teria pintado sozinha, e sim orientada pelo pai.

Artista

Artista “subverteu” cena bíblica envolvendo Susana (Foto: Ministério Italiano da Cultura)

A maioria das pinturas sobre a parábola retrata Susana como uma mulher frívola e namoradora, mas Artemisia optou por uma imagem vulnerável e assustada. Antes mesmo de ser violentada.

Depois da agressão de Tassi, sua abordagem tornou-se mais aguda.

 

Vingança

 

Já em Florença, pintou outra cena bíblica, Judite decapitando Holofernes.

Trata-se de seu quadro mais famoso e mostra o momento em que a viúva Judite, com ajuda de uma serva, corta a cabeça de um general que a havia assediado.

O quadro mais famoso de Artemísia,

O quadro mais famoso de Artemísia, “Judith decapitando Holofernes” (1612 – 1613). (Foto: Gallerie degli Uffizi )

A passagem bíblica já havia sido levada às telas por inúmeros pintores desde o Renascimento e era considerada uma alegoria do triunfo feminino sobre os homens.

Mas, nas mãos de Artemísia, a cena ganhou novos contornos – vários especialistas interpretam sua abordagem como um desejo de vingança pela agressão sofrida.

‘Judite’ foi um tema que Artemísia pintou outras duas vezes, algo também feito com ‘Susana’.

Passou a vida pintando e chegou a ter certa fama, mas caiu em profundo e longo esquecimento após sua morte, em 1654, em Nápoles.

Foi apenas na segunda metade do século 20 que sua arte começou a ser novamente apreciada por alguns críticos e seu nome, desenterrado. Mas sua “ressurreição” mesmo ocorreu com sua conversão em ícone feminista.

 Na segunda metade do século 20, Artemísia voltou a ser reconhecida pelos críticos (Foto: Gallerie degli Uffizi)

Na segunda metade do século 20, Artemísia voltou a ser reconhecida pelos críticos (Foto: Gallerie degli Uffizi)