Artigos

STF rejeita princípio da insignificância para mulher que furtou água

25/08/2016
STF rejeita princípio da insignificância para mulher que furtou água

No caso julgado pelo STF (HC 135.800) uma mulher (dona de um barraco) desviou água da contagem oficial. Isso não pode ser feito. Mas impor um ano de cadeia por esse fato pode ser um exagero (no caso concreto).

O que mais não se sabe (no caso da dona de um barraco)? Quanto tempo durou o furto da água, qual quantidade e qual o valor desviado? Nada disso o STF achou relevante para vir para dentro do processo. Confirmou o cumprimento da pena de um ano de prisão (regime aberto), negando a aplicação do princípio da insignificância por se tratar de “água da coletividade”. Mas não se sabe nem sequer quanto foi o desfalque.

É claro que o direito penal deve proteger a “água da coletividade”. Mas ela não é mais relevante que o corpo humano. Toda construção do princípio da insignificância começou com lesões corporais de ninharia contra o corpo humano. Ora, se o corpo humano (dotado de dignidade) pode ensejar a insignificância, todos os demais bens jurídicos (por mais relevantes que sejam) devem seguir, em tese, a mesma regra. Não há bens jurídicos canonizados. E se houvesse, claro que o corpo humano deveria ser o primeiro.

O processo julgado pelo STF, como se vê, foi mal instruído. Uma coisa é desviar água para um bairro inteiro outra distinta para um único “barraco”. Uma coisa é desviar água durante anos, outra distinta é fazer isso em único dia. Uma coisa é gerar 20 reais de prejuízo para a companhia d’água, outra distinta é desfalcá-la em dezenas de milhares de reais. O total do prejuízo é fundamental para o princípio da insignificância, mas isso não foi considerado relevante. Nem sequer uma estimativa dos danos foi feita.

Esses danos, ademais, se comparados com o que algumas companhias de distribuição de água estão nos “roubando” mensalmente, se tornam irrisórios. Esse ponto também deveria ser investigado pelo STF (para reconhecer eventualmente a insignificância no caso concreto).

Várias companhias distribuidoras de água estão nos “roubando” mensalmente nas contas. E estão nos “roubando” milhões. Uma “roubalheira” (empresarial) não justifica a outra (individual). Mas a informação poderia ser relevante para aferir a insignificância da conduta concreta incriminada.

É claro que ninguém pode “justificar” sua má conduta invocando a má conduta do outro. O “eu roubei menos” não vale como justificativa. Cada um deve ser responsabilizado pelo que faz, na medida da sua culpabilidade. Mas às vezes o fato é tão insignificante que afasta o crime. Aí não há que se falar em pena.

Não é porque seu vizinho, seu parente, seu conhecido, seu deputado ou seu presidente “rouba”, que você está autorizado a “roubar” também. “Roubar” é deplorável.

Mas a quantificação dos milhões que são “roubados” mensalmente da população consumidora de água poderia servir de (mais um) parâmetro para aferir a insignificância das condutas concretas. Outro dado relevante (que não aparece no processo) é saber se a companhia de água do DF está agindo como a Sabesp em São Paulo.

Compreendido isso, vejamos o seguinte: “Por serviço não prestado, Sabesp ganha R$ 813 milhões”. Esse valor, arrecadado pela companhia ao longo de 2014, decorre da cobrança mínima compulsória de 10 mil litros, mesmo se o consumo real for menor (F. Leite, Estadão 15/8/16).

Da mesma matéria citada consta ainda o seguinte: “Mesmo quem consome apenas 2 mil litros de água por mês, tem que pagar por 10 mil litros. Esse método é adotado há décadas por quase todas as empresas estaduais de saneamento do País. Os auditores do Tribunal de Contas do Estado (TCE) decidiram calcular sua consequência. A Sabesp arrecadou, apenas em 2014, R$ 813 milhões com tarifa em todo o Estado sem prestar os serviços de abastecimento de água e coleta de esgoto. A estatal diz que “segue as regras tarifárias determinadas pela legislação e pela agência reguladora do setor, a Arsesp”.

“A Sabesp faturou em 2014 um total de 573,5 bilhões de litros de água dos clientes que consomem de 0 a 10 mil litros por mês e pagam a tarifa mínima de R$ 44,76, arrecadando R$ 1 bilhão. Mas, de acordo com a auditoria, apenas 331,4 bilhões de litros foram efetivamente fornecidos aos usuários dessa faixa de consumo, ou seja, 57,8% do total”.

“Essa diferença de 242 bilhões de litros gerou uma receita “extra” de R$ 455,5 milhões apenas na tarifa de água, que equivale a metade da conta. Reproduzindo o cálculo com o esgoto cobrado pela Sabesp na fatura, mas que na prática não foi coletado (197,8 bilhões de litros), o valor chega a R$ 357,5 milhões”.

“O presidente da Sabesp, Jerson Kelman, já defendeu publicamente a alteração da cobrança mínima compulsória de 10 mil litros. Ele disse que cobrar o mesmo valor de quem consome menos, como 2 mil litros, por exemplo, é um “contrassenso” e sugeriu um sistema de tarifa binária, com uma taxa de conexão fixa e uma variável conforme o consumo, a exemplo da proposta feita pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE)”.

Conclusão: quem “rouba” pouco é ladrão, quem rouba muito é barão. Quem “rouba” dentro da lei não tem sanção. O punido é sempre o ladrão que não tem uma lei na mão.