Política

Flávia Piovesan: “Decidi aceitar o cargo para manter avanços e evitar recuos”

15/08/2016
Flávia Piovesan: “Decidi aceitar o cargo para manter avanços e evitar recuos”
A secretária Flávia Piovesan. (Foto: Andressa Anholete)

A secretária Nacional de Direitos Humanos Flávia Piovesan. (Foto: Andressa Anholete)

Militante em causas humanitárias por 20 anos, a procuradora do Estado de São Paulo e professora universitária Flávia Piovesan assumiu quase três meses atrás a secretaria Nacional dos Direitos Humanos do Governo interino de Michel Temer(PMDB). Criticada por participar de uma gestão sem mulheres no primeiro escalão, Piovesan viu na função uma oportunidade de se evitar retrocessos. Sem filiação partidária, ela é um dos raros quadros técnicos da gestão peemedebista. Sua relação com a família Temer é antiga. Foi orientada pelo presidente interino em seu mestrado, em 1994, e é amiga de uma das filhas dele, a secretária de Assistência Social do município de São Paulo, Luciana Temer.

Admitindo que enfrentará uma pauta mais reativa do que proativa, ela comemora uma primeira vitória, conseguiu evitar que o Congresso Nacional votasse o projeto de lei 5768/2016. Essa proposta autoriza que a Justiça Militar, e não a comum, julgue os membros das Forças Armadas pelo crime de homicídio cometidos até o fim deste ano. O projeto era extremamente criticado pelos movimentos sociais, que a batizaram de licença para matar.

Pergunta. Quando você foi convidada para esse cargo um grupo de militantes de direitos humanos e de alunos universitários fez um protesto pedindo que não assumisse a secretaria Nacional de Direitos Humanos, levando em conta seu histórico de atuação na área. Por que decidiu assumir a função?

Resposta. Pela causa. Meu compromisso de vida é pela causa de direitos humanos. Decidi para manter avanços e evitar recuos. Meu mantra é: meu partido é os direitos humanos. É a causa da minha vida por mais de 20 anos, como professora, pesquisadora, militante, integrei diversas organizações não governamentais e internacionais. Me senti no dever cívico de prestar uma contribuição ainda que em tempos tão árduos e desafiadores.

P. Você é uma militante dentro desse Governo?

R. Me vejo como uma defensora dos Direitos Humanos.

P. Como é para você, que tanto luta pelos direitos das mulheres, estar em um Governo que não tem mulheres em seu primeiro escalão?

R. Vejo que esse é um dos desafios. Acho que é um primeiro momento de nos empoderarmos passo a passo. A igualdade de gênero eu reputo essencial. Temos de ter cada vez mais a representação de mulheres porque somos poucas. Em alguns lugares, somos invisíveis. Somos a metade da população mundial, mães da outra metade. Se avaliarmos o parlamento brasileiro, houve um retrocesso no sentido de representação feminina. Em 1995 éramos 6%. Já duplicamos esse número, mas agora, em 2016, somos 9,8%. Ainda que defensora que seja da lei das cotas (para participação das mulheres na política), precisamos revisar as ações afirmativas. A ideia era progredir em um crescente. Para mim, seria um paradoxo dizer não quando sou convidada a ocupar esse cargo. Não vou porque não há mulher? Não penso assim. Temos de buscar a ampliação da participação. Nos direitos humanos, as lutas são incessantes, cada ponto de chegada é um ponto de partida.

P. Essa mentalidade de pouca participação feminina na política está arraigada entre os políticos brasileiros. Recentemente o ministro José Serra esteve no México e se surpreendeu com a quantidade de mulheres no Congresso. Até fez brincadeiras que foram encaradas como sexistas. Como mudar essa mentalidade inclusive de quem está no poder?

R. O sexismo e a violência contra a mulher existem porque há uma cultura discriminatória. Temos de desmantelar essa cultura, afirmar novos paradigmas. Penso que é fundamental desenvolvermos iniciativas no campo de educação e direitos humanos. Aqui na secretaria, estamos desenvolvendo um pacto universitário no combate à homofobia, racismo, sexismo, intolerância, respeito à diversidade e promoção de direitos. A ideia é estimular as pesquisas e linhas de investigação voltadas à essas temáticas. Que haja canais institucionais dentro das universidades para receber denúncias de violações de direitos, para acompanhá-las e responsabilizar os perpetradores. Para que haja campanhas de sensibilização e capacitação de docentes. Para que haja programa de valorização das boas práticas. Trouxemos o Ministério da Educação para o diálogo e queremos adotar modelos também na escola básica. Vamos discutir isso com secretários estaduais de educação para preparamos uma plataforma de combate à violação de direitos. A mudança de cultura, de comportamento tem de começar desde cedo. Esse é o grande passo.

P. A pasta que você comanda já foi um ministério e agora é uma secretaria. Isso não é um retrocesso nessa luta por direitos humanos?

R. A luta por direitos humanos tem avanços e recuos. Não é linear. É um processo de criação, de construção, de embates e de tensões. O que posso lhe dizer com toda tranquilidade é que me foi dada carta branca. O que reputo mais importante, independentemente da forma, é assegurar minha independência. Não tive, até o momento, qualquer interferência. O que me parece central é essa independência e não ser cerceada. Até porque tenho uma história de 20 anos nos direitos humanos. Aceitei o cargo com esse compromisso por conta de tudo o que já defendi.

P. Já que tem tanta independência, trocar ministério por secretaria foi só uma mudança de nome, então?

R. Tenho independência de avançar em pautas num diálogo construtivo com o Ministério da Justiça. Tenho absoluta tranquilidade ao não cerceamento, a viabilizar esse trabalho

P. A questão dos refugiados não é mais responsabilidade da pasta de direitos humanos. Mas como você já tratou desse assunto enquanto pesquisadora, queria entender como enxerga essa paralisação das negociações do Governo Temer com a Europa para receber os refugiados sírios?

R. Esse é um tema tão delicado. Vejo cada refugiado como um caso de violação de direitos. Eles só existem porque direitos foram violados em alguma geografia. O desafio é evitar que esses direitos persistam sendo violados. A Europa hoje está pagando um alto preço por não ter definido uma responsabilidade coletiva no trato do tema. Hoje temos 56 milhões de refugiados no mundo e ao menos 200 milhões de imigrantes. Essa população circula, leva sua religião e a Europa vive hoje essa tensão cultural. Ela paga o alto preço por não ter uma política coletiva. Não houve uma responsabilidade coletiva. A Alemanha abriu os braços e outros países fecharam. São pessoas que chegam e, no fundo, não queriam estar lá. Elas queriam voltar para suas casas. Mas você tem três opções: a integração no país que o acolhe, o reassentamento em outro lugar ou a devolução quando a situação estiver pacificada. Nos estudos que fiz, não há respostas suficientes para esse tema.

P. Mas, particularmente, você acha que o Brasil deveria voltar a negociar a recepção de refugiados sírios ou não?

R. Serei sincera. Não tenho acompanhado detidamente. Sei que nosso número era pequeno, eram cerca de 20.000 refugiados. A nossa ordem constitucional prevê a prevalência dos direitos humanos e a não-discriminação. Agora, volto a insistir no campo das responsabilidades compartilhadas. Esse é um problema global que requer soluções globais. Quase 90% dos refugiados são acolhidos em países em desenvolvimento. Por isso, é um problema que precisa ser visto sobre a ótima global de responsabilidades partilhadas e diferenciadas.

P. Pela primeira vez um grupo de brasileiros foi preso por suposto envolvimento com terrorismo. O embasamento para a prisão foi uma lei que é criticada por movimentos sociais. Dentro do Congresso há uma série de propostas para endurecer ainda mais essa legislação. Como você vê essas mudanças legislativas?

R. O mundo vive essa agenda sombria, infelizmente. Quando se fala emterrorismo emergem dois assuntos: uma agenda restritiva de direitos e como garantir direitos em tempo de terror. O mundo hoje enfrenta a definição do terrorismo e ainda não há um tratado específico. Eu reputo que é possível enquadrar de acordo com o Estatuto de Roma, como um crime contra a humanidade. Esse é um tema onde se tem muito mais perguntas que respostas. Temos de estudar medidas preventivas, avançar em marcos conceituais evitando criminalizar movimentos sociais e evitar que medidas antiterroristas impliquem na derrogação de direitos. O primeiro ingrediente nessa questão é ter lucidez. É ser iluminado pela razão, não pela emoção.

P. Você fala em equilíbrio e lucidez, mas uma breve análise do Congresso brasileiro nota-se que essas palavras não estão no vocabulário de parte dos parlamentares. Como tratar direitos humanos diante de um Legislativo tão conservador?

R. Com um diálogo construtivo. Muitas vezes nossa pauta se torna uma pauta reativa. Vou dar um exemplo, havia um projeto que previa ampliar a jurisdição militar sobre os crimes cometidos pelos militares…

P. Você se refere àquela proposta de lei que queria transferir para a Justiça Militar a responsabilidade por julgar, até o fim deste ano, os militares que cometessem homicídios? É o que os movimentos sociais chamam delicença para matar.

R. É esse projeto. A liderança do Governo nos contatou e nós elaboramos uma nota técnica demonstrando extrema preocupação. Seria uma mudança no Código Militar que nos parece uma aberração. E mais do que isso, era uma mudança inadmissível. A jurisdição militar só pode ser compreendida se ela se ativer estritamente aos crimes militares que têm como base a hierarquia e a ordem. Há todo um ritual distinto, uma percepção. Entendo que há muitas pautas reativas.

P. Para ficar claro. O Governo desistiu de apoiar esse projeto das Forças Armadas?

R. O senador Aloysio Nunes [líder do Governo no Senado] convenceu o presidente do Senado, Renan Calheiros, que o projeto fosse retirado de pauta. Ele iria para plenário, mas conseguimos evitar que ocorresse agora. São articulações dessa natureza que estamos de estar vigilantes e lúcidos.

P. Falando em Aloysio Nunes, ele tem um projeto que pretende aumentar o tempo de internação de adolescentes infratores que cometeram crimes graves. Além disso, tramita no Congresso projetos de lei a favor de reduzir a maioridade penal. Como você enxerga essas propostas?

R. Vejo com preocupação. Sou radicalmente contra a redução da maioridade penal. Creio que é necessária a total implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Ele precisa ser reavaliado sobre perspectiva crítica. Entender o que foi exitoso e o que não foi. Saber o que foi aplicado pelos operadores do direito. Acho que essa é uma pauta muito delicada e ser vista com muito cuidado.