Brasil

A cartilha faz campanha por Lula

19/08/2016
A cartilha faz campanha por Lula
(Foto: Divulgação)

(Foto: Divulgação)

Depois da carta de Dilma aos senadores, temos agora a cartilha de Lula. O Partido dos Trabalhadores (PT) lançou nesta semana, em quatro idiomas, um documento em que pretende apresentar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como (não diga?) vítima de uma “caçada judicial”. Eis os principais argumentos apresentados para defendê-lo:

1) Nada menos que doze direitos de Lula foram violados, segundo a cartilha, desde o sigilo às comunicações telefônicas e à privacidade ou o direito de ir e vir;

2) Lula é alvo de 10 inquéritos, duas ações penais, duas ações da Receita Federal, quebra de sigilos fiscal e telefônico e de 38 mandados de busca e apreensão contra ele, suas empresas e familiares, que configuram, segundo o texto, um “tiro-ao-alvo judicial”;

3) Apesar de ter cumprido mandados e prestado depoimentos voluntários, Lula foi submetido a condução coercitiva no último dia 4 de março, nas palavras da cartilha, de forma “ilegal, injustificada e arbitrária”, além de ter sido alvo de um pedido de prisão preventiva “de forma ainda mais ilegal” pos procuradores paulistas;

4) O juiz Sérgio Moro, afirma o texto, “divulgou ilegalmente” conversas telefônicas privadas de Lula e familiares, com “interlocutores que nada têm a ver com os fatos investigados”;

5) Não há, segundo a cartilha, “nenhuma ação judicial aceita contra Lula, ou seja, ele não é réu”;

6) De acordo com o documento, Lula não é nem nunca foi dono do apartamento 164-A do Condomínio Solaris, “porque a família não quis comprar o imóvel, mesmo depois de ele ter sido reformado pelo verdadeiro proprietário”;

7) Também não é, prossegue a cartilha, dono do Sítio Santa Bárbara, em Atibaia, “comprado por amigos de Lula e de sua família com cheques administrativos”;

8) Depois de deixar a presidência, afirma a cartilha, Lula fez 72 palestras contratadas por 40 empresas no Brasil e no exterior, todas elas realizadas e declaradas, de acordo com uma lista apresentada. Todas as doações ao Instituto Lula são legais, segundo a cartilha, e ele não se apropriou do acervo presidencial;

9) Lula, diz o texto, jamais conversou com o senador Delcídio Amaral “sobre ações para a obstruir a Justiça ou sobre qualquer ato ilícito”.

Aí está, portanto, a versão petista para os fatos. Consumado o impeachment de Dilma, o partido pretende limpar a imagem de seu candidato nas eleições de 2018, conta com a simpatia da esquerda e daquela parte da imprensa internacional ainda encantada com a trajetória pessoal de Lula. Tudo isso é compreensível.

Mais uma vez, contudo, o PT faz uma manobra de marketing político de eficácia incerta. Para que o efeito alcançado fosse o desejado, seria necessário ter sido preciso nos fatos. É justamente aí que a cartilha peca, por omissão ou por mera falsidade mesmo.

O erro mais eloquente está no item 5. Lula já é réu, desde que o juiz Ricardo Leite, da Justiça Federal de Brasília, aceitou a denúncia em que ele é acusado de obstrução de Juistiça ao ordenar a compra do silêncio do ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró.

 

No acordo judicial firmado sob a supervisão do Supremo Tribunal Federal para selar sua colaboração com a Justiça em troca da redução da pena, o ex-senador Delcídio Amaral refuta o item 9. Afirma que Lula foi o mandante dos pagamentos para impedir que o ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró fizesse delação premiada e diz que Lula participou da compra do silêncio de Marcos Valério. Se a defesa de Lula conseguir provar que Delcídio mentiu, o acordo perderá o valor.

No caso dos imóveis em Atibaia e no Guarujá, como bem sabe qualquer um que ainda tenha a paciência ou o dever profissional de acompanhar os intermináveis passos da Operação Lava Jato, todas as evidências apresentadas contra Lula se chocam com os itens 6 e 7. Com base em depoimentos de testemunhas (como caseiro, engenheiro e zelador) e documentos (como notas fiscais, mensagens eletrônicas ou contratos), há uma suspeita fundamentada de que, se é verdade que Lula jamais foi dono formal dos imóveis, as reformas foram feitas neles sob o comando de sua família, por empreiteiros já condenados na Lava Jato. Em troca de quê? Eis o que as investigações devem esclarecer.

Os itens de 1 a 4 elencam medidas tomadas pela Justiça que a defesa de Lula considera ilegais. Como o Brasil vive em pleno estado de direito, foi-lhe possível recorrer de todas elas. Várias aguardam julgamento. Outras já foram decididas, em especial os recursos relativos às escutas telefônicas e à condução coercitiva de Lula em março.

O ministro Teori Zavascki considerou ilegítima apenas uma das conversas interceptadas, por ter sido gravada num horário posterior à suspensão do mandado de escuta – era aquela em que Dilma mandava chamar o “Bessias”. Todas as demais foram consideradas legais e têm relação evidente com o caso investigado.

Quanto às tentativas da defesa para levar o caso contra Lula para instâncias superiores, alegando a “suspeição” de Moro para julgá-lo depois de ter submetido Lula a interrogatório sob coerção, todas têm até agora fracassado. Teori manteve o julgamento na alçada da Justiça Federal do Paraná. Claro que a defesa ainda não desistiu de recorrer – e foi até a ONU proclamar a inocência de seu cliente.

Os item 8 nega de modo genérico acusações que demandam refutação específica. Ninguém acusou Lula de não ter feito as palestras pelas quais foi remunerado, nem de ter escondido o dinheiro recebido. A questão é outra. Ele é investigado por tráfico de influência internacional, sob a acusação de ter usado as palestras como pretexto para exercer lobby em nome de empreiteiras, em especial a Odebrecht, sobretudo em países da África. A esperada delação premiada do empreiteiro Marcelo Odebrecht deverá trazer novas revelações a respeito do caso.

A cartilha petista omite, portanto, as provas mais eloquentes que resultam da investigação de mais de dois anos da Lava Jato, para criar a impressão de que Lula é perseguido. Nem tudo o que afirma está errado. É verdade que Moro cometeu erros em relação a Lula, de naturezas diferentes, como escrevi no próprio dia da sua condução coercitiva e por ocasião dadivulgação das escutas telefônicas. Mas não é possível transformar falhas pelas quais até jápediu desculpas em perseguição deliberada.

A Lava Jato é uma investigação de extrema complexidade, tanto no que diz respeito às provas dos crimes quanto às consequências políticas. Na prática, Moro tem conseguido um notável equilíbrio na condução do caso e demonstrado mais cautela que açodamento. Com provas muito menos contundentes que as existentes contra Lula, prendeu vários executivos que depois mandou soltar na Lava Jato.

A cartilha sobre Lula é apenas uma peça de propaganda, como outro documento do PT que já analisei. Seu efeito jurídico é nulo, e seu valor para a militância petista – já convencida de tudo o que é lá apresentado – é discutível. Ela deve ser entendida apenas como mais um lance que tenta resgatar a imagem do único candidato ainda viável a recuperar o poder para aquele hoje considerado o partido mais corrupto do Brasil.