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O jogo de Hillary contra Trump.

29/07/2016
O jogo de Hillary contra Trump.
“Não acreditem em qualquer um que diga: ‘só eu posso consertar’ ”, afirmou Hillary ontem no discurso em que aceitou a candidatura. (Foto: G1)

“Não acreditem em qualquer um que diga: ‘só eu posso consertar’ ”, afirmou Hillary ontem no discurso em que aceitou a candidatura. (Foto: G1)

Nenhuma imagem pode ser mais eloquente. O imigrante paquistanês Khizr Khan, ao falar ontem na Convenção Democrata, na Filadélfia, brandiu a Constituição americana e perguntou ao candidato republicano Donald Trump: “Você já leu a Constituição dos Estados Unidos? Eu empresto minha cópia de bom grado”.

Muçulmano, Khan perdeu o filho Humayun, capitão do Exército americano, na Guerra do Iraque em 2004. Humayun foi vítima da explosão de dois homens-bomba que estavam dentro de um carro que parou numa patrulha. “Hillary Clinton estava certa ao chamar meu filho ‘o melhor da América. Se dependesse de Donald Trump, ele nunca teria estado na América”, disse Khan.

A emoção do pai imigrante, muçulmano, cujo filho morreu lutando para defender o país que o acolheu, mostra como os democratas pretendem combater o discurso preconceituoso de Trump, que despreza a liberdade religiosa estabelecida na Constituição. A campanha democrata tentará apresentar Hillary Clinton, primeira mulher candidata na história dos Estados Unidos, como candidata da união – e Trump como o candidato da divisão do país.

“Não acreditem em qualquer um que diga: ‘só eu posso consertar’ ”, afirmou Hillary ontem no discurso em que aceitou a candidatura. “Americanos não dizem: ‘só eu posso consertar’. Nós dizemos: ‘vamos consertar juntos’.” Com esse tipo de declaração, Hillary pretende superar suas principais deficiências: a incapacidade de estabelecer contato com o eleitor comum, a dificuldade de parecer mais humana e menos robô e a desconfiança – justificada, tendo em vista suas mentiras e contradições – que dois em cada três americanos dizem ter em relação a ela.

Apesar dos protestos dos partidários de Bernie Sanders no primeiro dia e das disputas nos bastidores, o Partido Democrata conseguiu aparentemente sair unido ao final da Convenção, ao contrário do que ocorreu com os republicanos em Cleveland, na semana passada – basta lembrar que Ted Cruz se recusou a endossar a candidatura Trump. A organização da campanha democrata também é reconhecidamente superior, no que diz respeito ao uso de tecnologia para atingir grupos de eleitores indecisos.

A dúvida agora é se isso será suficiente para vencer. É se a nova Hillary que fala em união conseguirá recuperar a dianteira nas pesquisas que perdeu para Trump nas últimas semanas. Hillary já lidera com folga em grupos de eleitores como mulheres, negros, latinos e imigrantes em geral. Também leva vantagem em estados tradicionalmente democratas, como Nova York ou Califórnia. Seu desafio está numa fatia dominante no eleitorado, em que Trump registra vantagem consistente e crescente: homens bancos sem nível superior.

São os operários, trabalhadores braçais ou funcionários de empresas de serviços que se tornaram as maiores vítimas da crise financeira de 2008, da globalização e da perda de emprego para a China e outros países. Em geral, gente simples e religiosa, de estados como Indiana, Virgínia, Ohio ou Pensilvânia. É neles que cresce o preconceito contra os imigrantes latinons, contra os muçulmanos e a sensação de que a recuperação econômica promovida pelo governo Barack Obama só beneficou os banqueiros e os mais ricos.

Em seu discurso, Hillary mencionou ontem os 15 milhões de empregos criados por Obama. É um número verdadeiro, mas ele esconde uma realidade mais dura. A desigualdade cresceu, e diversas áreas e setores incapazes de se reerguer depois da recessão econômica, incapazes de competir com a China. É esse público que se tornou um terreno fértil para discursos populistas de toda sorte, à esquerda (Sanders) ou à direita (Trump).

Em sua perspicaz reportagem de capa desta semana, a revista britânica The Economistafirma que a disputa na política contemporânea não se dá mais entre as noções caducas de “direita” e “esquerda”, mas entre políticas de maior “abertura” ou maior “fechamento” de fronteiras nacionais.

Todos os governos americanos, democratas ou republicanos, tentaram nas últimas décadas ampliar os acordos comerciais e a abertura de fronteiras. No Reino Unido do Brexit ou nos Estados Unidos de Trump, a globalização é vista como inimigo a derrotar. 

Essa inversão no movimento global tem alimentado partidos políticos que têm obtido sucesso na Hungria, na Polônia, na Áustria, na França e no Reino Unido. É ela que alimenta também o novo Partido Republicano, liderado por Trump. Um partido que está baseado não mais nas políticas liberais que pregavam – mais do que praticavam – o Estado mínimo, como nos tempos de Ronald Reagan ou dos dois presidentes Bush. Mas no ressentimento contra os estrangeiros e num governo que se imponha pela força e autoridade.

Não é uma coincidência que tantos republicanos, desiludidos com o abandono da ortodoxia econômica por Trump, tenham ido ontem à Convenção Democrata expressar seu apoio a Hillary. “Donald Trump, você não é Ronald Reagan”, disse Doug Elmets, que foi assessor de Reagan e sempre votara no Partido Republicano até declarar voto em Hillary ontem.

Todos afirmaram em seus discursos que, antes de ser democratas ou republicanos, eram americanos. Repudiavam, portanto, a retórica chauvinista de Trump, contra mexicanos, muçulmanos e imigrantes. Os Estados Unidos sempre souberam extrair a força de todos os estrageiros que acolheram para se fortalecer. Com todos os erros que cometeram ao longo da história, souberam fazer valer o bordão nacional que Hillary citou ontem em seu discurso: “E pluribus unum” (de muitos, um).

As eleições de novembro definirão se o povo americano continuará a honrar essa divisa ou se, ao contrário, porá em prática o programa de Trump, expulsará os imigrantes, impedirá muçulmanos de entrar no país, erguerá muros em suas fronteiras, imporá barreiras a tudo o que venha de fora e, no lugar da diversidade que compõe a nação americana, colocará apenas ressentimento, violência e ignorância. Será um país pelo qual, obviamente, soldados como Humayun Khan jamais poderão lutar. Um país cuja potência global será reduzida, até um dia ser superada por outras. Dia em que poderá muito bem mudar sua divisa para: “E unus, nihil”.