Cidades

Fábrica centenária continua fechada

05/06/2016
Fábrica centenária continua fechada
Fábrica da Pedra está de portas fechadas há dois meses

Fábrica da Pedra está de portas fechadas há dois meses

Neste domingo 5 de junho, a Fábrica da Pedra, localizada em Delmiro Gouveia, completa 102 anos. A data, que sempre foi motivo de comemoração e orgulho para o município, este ano é lembrada com grande tristeza – é a primeira vez que a fábrica comemora um aniversário com sua produção paralisada.

O parque industrial, que ao longo da história chegou a estar entre os maiores produtores têxteis do país, está às escuras desde abril deste ano, quando a Eletrobrás cortou o fornecimento de energia por atraso no pagamento. A medida forçou a empresa a dar férias coletivas aos funcionários e suspender a confecção dos tecidos. A crise econômica no país agrava ainda mais a situação, fazendo a fábrica amargar os piores momentos da sua trajetória com déficit financeiro da casa dos milhões.

A triste história que a indústria do Sertão enfrenta atualmente causa inquietude no vereador Edvaldo Nascimento (PCdoB), que é professor e estudioso do caminho percorrido pelo empreendedor Delmiro Augusto da Cruz, fundador da fábrica. Durante sessão na Câmara de Vereadores, o parlamentar lembrou com lamento o fato da empresa chegar aos102 anos com as portas fechadas. “É uma grande aflição ver a Fábrica da Pedra, um dos símbolos de desenvolvimento da região, chegar aos 102 anos com a produção parada. A data marca ainda o nascimento do homem Delmiro Gouveia e o dia, que deveria ser orgulho para nós, é um momento de lamento. Ver um parque industrial desse porte, que possui modernas máquinas e capacidade de produção de um milhão e meio de metros linear de tecido, agora paralisado, é realmente muito triste”, falou.

Edvaldo Nascimento

Edvaldo Nascimento

Edvaldo ressaltou que apesar da produção paralisada, a empresa, que atualmente é gerida pelo Grupo Carlos Lyra, mantém o quadro de pessoal, composto por 578 funcionários, na sua integralidade, inclusive com os salários em dia. “São 60 dias que as atividades estão paradas, mas o quadro de pessoal está mantido, com seus vencimentos em dia. Segundo a direção, a previsão é retomar a produção em julho, e nós estamos nessa torcida, para vermos mais uma vez a obra do empreendedor Delmiro Gouveia cumprir o seu papel industrial e nos fazer esquecer esse momento nebuloso pelo qual está passando ”.

O vereador lembrou ainda dos investimentos realizados pela Fábrica. “Com a folha de pessoal são gastos R$ 1 milhão e outros R$5 milhões em aquisição de insumos, como energia, algodão, poliéster, água, manutenção. Sua produção é vendida para o mercado interno, sendo destinada 50% para o Sudeste e 50% para o Norte/ Nordeste e sua dívida atual chega na casa dos R$ 30 milhões”, falou o parlamentar.

“Desde abril, quando a energia da Fábrica foi cortada, que venho reunindo os vereadores e conversando com autoridades para tentar reverter essa situação, porque acredito que juntos podemos ter uma voz ativa na Eletrobrás e assim reverter essa situação da Fábrica. Chegamos aos 102 anos paralisados, mas luto para que essa página seja virada e em breve possamos novamente nos orgulhar em sediar no nosso município uma fábrica com esse porte e que carrega uma belíssima história de desenvolvimento e sucesso em todos esses anos”, enfatizou Nascimento.

HISTÓRIA

Chegado ao Sertão alagoano, em novembro de 1902, Delmiro instalou-se em Água Branca, situada no alto de uma serra e que, no tempo do Império, tinha sido sede de um baronato. Lá, por recomendação expressa de Euclides Vieira Malta, foi recebido justamente pelas famílias Torres e Luna, que descendiam dos barões de Água Branca, vindo a ser seus amigos mais próximos Dr. Miguel Torres, juiz de Direito, o engenheiro Luiz Torres e o Dr. Antônio Torres. A recomendação do governador Euclides Vieira Malta foi feita diretamente ao coronel e senador estadual Ulisses Vieira de Araújo Luna, sendo Delmiro seu hóspede na fazenda “Cobra”, localizada próxima da sede do município, para onde veio posteriormente lhe fazer companhia Carmélia Eulina do Amaral Gusmão.

Decidido a se estabelecer no Sertão de Alagoas, em março de 1903, Delmiro comprou uma fazenda que denominou Rio Branco, perto da Pedra, um pequeno povoado pertencente ao município de Água Branca, à margem da Ferrovia Paulo Afonso.

Essa estrada de ferro possibilitou a Delmiro a retomada de seus negócios de compra e exportação de peles de animais, tendo em vista que a confluência dos Estados de Bahia, Sergipe, Pernambuco e Alagoas favorecia a chegada das peles até a Pedra, donde podiam seguir para o mundo pelo leito do rio São Francisco.

Delmiro, em 1909, já tinha retomado o monopólio do comércio de peles no Nordeste brasileiro. Com o acúmulo de capitais e a ajuda de sócios brasileiros e estrangeiros, preparou-se para novos empreendimentos.

Instalado definitivamente na Pedra e já refeita a sua fortuna, depois dos desastres do Recife – um político e outro industrial, mas ambos com fortes repercussões financeiras -, Delmiro Gouveia recebeu uma missão americana chefiada por Mr. Moore, capitalista que realizava entendimentos com o chefe da Pedra, para a produção de energia hidrelétrica e a criação de uma grande empresa agrícola e industrial.

Delmiro projetara a construção de uma fábrica de linhas, para o que realiza os preparativos no intuito de implantar o núcleo fabril, que incorporou às primeiras edificações, enquanto constituía, em 1912, a Cia. Agro-Fabril Mercantil com sede em Recife.

Tratava-se de uma sociedade anônima para garantir o funcionamento da fábrica projetada. Essa empresa incorporou, com os seus sócios, a firma Iona & Cia., bem como seus principais auxiliares. Todos eles tinham participação na organização e foi destinado certo número de ações para cada sócio. Conforme art. 4º do estatuto da recém-criada empresa, a Cia. tinha por finalidade: Explorar nos Estados de Pernambuco, Alagôas e Bahia o commercio de gado vaccum, cavallar, cabrum e ovino, plantio de algodão, irrigação de terras seccas, fôrça elétrica e suas aplicações e industria fabril […]

Recebeu Delmiro, por meio do Decreto Nº. 503, de 30 de novembro de 1910, a concessão através da Iona & Cia. isenção por dez anos: De impostos estaduaes para a importação dos maquinismos necessários á fundação de uma fábrica destinada á confecção de redes, linhas simples ou em carretel ou novelos que pretendem montar neste Estado, bem como os de exportação dos produtos da mesma fabrica a contar da data de sua instalação.

Funcionários indo para a fábrica nos idos de 20

Funcionários indo para a fábrica nos idos de 20

Delmiro viajaria para Londres a fim de adquirir as máquinas e o material necessário para a Usina Hidrelétrica de Angiquinho e para a fábrica de linhas que iria beneficiar o algodão abundante na região. Desse modo, após seu regresso da Europa, logo “começam a chegar às máquinas componentes do conjunto da turbina hidráulica que seria montada na cachoeira, material elétrico, bomba e tubos condutores para o serviço de abastecimento de água”.

Junto com o maquinário também vieram técnicos de vários lugares (Itália, Inglaterra, Alemanha), para escolha do local e acompanharem a montagem dos equipamentos. Tendo as obras da Usina de Angiquinho sido iniciadas em 1911, já em 1912 começa Delmiro a construção do prédio da fábrica e as residências dos operários.

Com a fábrica pronta, Delmiro reuniu-se com os sócios para organizarem os orçamentos necessários para aquisição de matéria-prima e insumos, como algodão de fibra longa e os carretéis. O algodão viria do Rio Grande do Norte e da Paraíba e os carretéis eram comprados da concorrente escocesa. E, por unanimidade, os sócios definem o nome na linha, que se chamaria “Estrela”.

Foi, então, no dia 05 de junho de 1914, inaugurada a fábrica de linhas da Pedra, fato que, segundo Menezes (1991, p.76), foi comemorado festivamente, ao tempo em que se ouvia o som da sirene como que anunciando à população a notícia do feito sertanejo.

A fábrica passou a funcionar em fase de experiência, com jornada de trabalho de oito horas diárias, produzindo o tipo de linhas glacê, linhas de bordar e de crochê macramê. Os operários principiantes e técnicos procuravam regular as máquinas e estudar a resistência do produto fabricado, tendo as primeiras linhas vendidas causado má impressão, ocasionando a demissão de vários técnicos.

Fábrica atravessou o tempo sendo o esteio da economia da região

Fábrica atravessou o tempo sendo o esteio da economia da região

O corpo de operários chegou a atingir, na quadra do movimento máximo, dois mil indivíduos de ambos os sexos que trabalhavam dia e noite, de segunda a sábado.

A maioria do operariado era brasileiro, recrutado na população bronca do sertão bravio, o qual, recebendo os ensinamentos do chefe e dos profissionais contratados para amestrá-lo, tornara-se dentro de pouco tempo hábil no manejo de todos os aparelhos e de toda a maquinaria e, ainda hoje, são esses nativos que Delmiro instruiu e mandou instruir, os mesmos que executam as mais difíceis tarefas concernentes ao serviço elétrico e fabril que se desenvolvem na Pedra nesta sua segunda fase.

Com à fábrica em atividade, em junho de 1914 o número de funcionários ia crescendo e sertanejos oriundos dos municípios e Estados vizinhos vinham a Pedra em busca de trabalho. Só a fábrica de linhas tinha, em 1916, cerca de “1.500 operários, dos quais aproximadamente 700 eram mulheres, 400 eram homens e 400 eram crianças”.

Na “vila da Pedra”, já nos começos da fábrica, “ali se constituía […] uma escola técnica de trabalho onde os operários, cada qual em suas secções, se preparavam eletricistas, mecânicos, fiadeiros, tintureiros, chauffeurs e tantas outras atividades” (SANTOS, 1947, p.36).

A seleção para contratação do pessoal para trabalhar na fábrica era feita pelo próprio Delmiro, que também acompanhava pessoalmente a entrada e a saída dos operários diariamente no começo e no final dos turnos de trabalho, como se pode ver pelo testemunho a seguir: Delmiro sentava-se à porta, aguardando a entrada do operariado. Feição severa, olhar perscrutador, recebia o “bom dia” de todos quantos chegavam e reclamava, às vezes até com dureza, daqueles que não o davam. Os retardatários não eram admitidos. Não falava com nenhum, a não ser para dar ordem; para nenhum tinha um sorriso ou uma palavra de estímulo. E não admitia, sequer, que um operário entrasse na fábrica trajando roupa suja.

A partir da implantação da fábrica de linhas, o núcleo fabril da Pedra passa, assim, a ser utilizado por muitos visitantes para propaganda desse espaço de Sertão como modelo de civilização e trabalho, graças, segundo eles, ao processo “educacional e civilizatório” que Delmiro tinha implantado. Foram esses que contribuíram para a construção da imagem da Pedra como paradigma de civilização dos tempos modernos. Parece evidente que esse espanto em encontrar palacete, vida de moldes urbanos e trabalho desenvolvidos nos moldes dos núcleos fabris dos lugares mais progressistas do Brasil e do exterior somente se explica porque essa experiência estava localizada no Sertão, não sendo despropositado assinalar que ficava, justamente, entre Canudos e Juazeiro.

Era a crença no progresso e na ciência que empolgava, principalmente, setores republicanos e intelectuais, influenciados por ideias e modelos de desenvolvimento americano e europeu, sendo essa a referência que informava as notícias e as análises feitas pelos visitantes da Pedra. (Edvaldo Nascimento, Delmiro Gouveia e a Educação na Pedra, 2015).

A Fábrica da Pedra esteve sob o comando de Delmiro de 1914 até 1917, quando foi assassinado. Com a morte de Delmiro Gouveia assumem o comando da firma Iona & Cia. e os trabalhos da Cia. Agro-Fabril Mercantil.

Segundo relato de Francisco Magalhães Martins, biógrafo de Delmiro Gouveia as decisões de Iona, sua palavra e vontade pessoal passaram a ser soberanas. Ao poder de chefe somava-se o das ações que representava: as firma Iona & Cia., as que detinha individualmente e as de seu cunhado Raul Brito.

Os filhos de Delmiro, principalmente o jovem Noé Gouveia, esperavam ansiosamente atingir a barreira legal da maior idade para entrar com ação de perdas e danos, sob pretexto de atos lesivos a seus interesses os praticados por Iona e por Balthazar, seu tutor, dando-se pressa em elevar o capital social da Cia., para da mesma se apossarem, conferindo-se por ato de simulação a qualidade de maiores acionistas, que até então pertencia aos herdeiros, seus representantes.

Em 1924 ingressaram em juízo e têm ganho de causa, reconhecido o cabimento da ação pela justiça, segundo sentença proferida em 9 de fevereiro de 1925.

Assim, Iona foi afastado, a empresa passa a sofrer forte concorrência da Machine Cotton. O Presidente da República, Artur Bernardes, a quem foi exposta a situação difícil por que passava a Agro-Fabril, prometeu não só empréstimo pelo Banco do Brasil, de 3.000 contos de rés, como baixar lei protecionista da indústria nacional, criando entraves ao truste estrangeiro, já de garras de fora, ostensivamente, como polvo absorvente. Saiu realmente o decreto, de nº 17.383, em 19-7-26, permitindo o aumento da taxa de importação sobre a linha de coser, de 2.000 para 10.000 réis por quilo.

Por intermédio do Centro Industrial de Fiação e Tecelagem de Alagoas, e com a campanha de imprensa, os ditos herdeiros ainda conseguiram que o Congresso Nacional pusesse na lei que orçou a Receita da União, para 1926, autorização ao Poder Executivo para restringir, ou mesmo proibir, a importação de qualquer produto estrangeiro, ao verificar que fabricantes, representantes ou importadores, concedendo vantagens especiais ao comerciante que se comprometesse a não vender o similar nacional, procuravam, assim, prejudicar o artigo brasileiro.

Em 15 de novembro de 1926, assumiu a presidência o Sr. Washington Luís. Os herdeiros de Delmiro Gouveia acabariam ficando exaustos e sem esperança do empréstimo prometido, resolvendo desfazer-se de suas ações da fábrica, esta era um elefante branco, com as patas cravadas na Pedra, lugar onde eles não queriam viver.

Visando a preservar aquele patrimônio tão cobiçado e do alto interesse nacional, o pioneiro estabelecera, em testamento, cláusula pela qual os filhos só poderiam vender ou alienar por qualquer forma tais ações depois que atingissem 30 anos de idade. No entanto, houve jeito para que, muito antes, isto é, em 1927, eles pudessem transferir com autorização do Sr. Juiz de Água Branca, o dito patrimônio aos Sres. Menezes Irmãos & Cia., pela quantia de 3.600 contos de reis, empregada em ações da dívida pública, nas quais só poderiam por a mão com idade de 30 anos.

Os Menezes Irmãos e Cia., comandaram a Fábrica da Pedra até 1986, quando a Fábrica foi vendida para o Grupo Mineiro Cataguases Leopoldina. Em 1992 o Grupo Alagoano Carlos Lyra adquire a Fábrica da Pedra até os dias atuais.