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Educação alagoana e brasileira no centro de uma guerra ideológica

27/06/2016
Educação alagoana e brasileira no centro de uma guerra ideológica
 (Foto: Ilustração/Reprodução: ouseja.jor.br/)

O artigo I, do Escola Livre, diz que “não abusará da inexperiência, da falta de conhecimento ou da imaturidade dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para qualquer tipo de corrente específica de religião, ideologia ou político-partidária”. (Foto: Ilustração/Reprodução: ouseja.jor.br/)

A polarização ideológica que atingiu o país nos últimos anos tem levado a educação para o centro de uma batalha que começa a ter contornos perigosos, na opinião de educadores. Iniciativas espelhadas no movimento “Escola Sem Partido“, que prega o “fim da doutrinação” nas escolas, têm se espalhado pelo Brasil e pressões conservadoras querem levar a aprovação da Base Nacional Comum Curricular, um documento guia para todas as escolas e que há um ano é discutido por especialistas, para as mãos do Congresso, que em 2015 já conseguiu banir o termo “gênero” do Plano Nacional de Educação, por considerar que a palavra se referia a uma questão de ideologia.

Em Alagoas, décimo Estado onde o projeto estava em discussão, ele foi aprovado no final do ano passado na Câmara dos Deputados, sob o nome de “Escola Livre”. O primeiro do tipo no país, ele entrou em vigor no mês passado e proíbe os professores de praticarem “doutrinação política e ideológica em sala de aula” e de “veicularem conteúdos que possam induzir os alunos a um único pensamento religioso, político ou ideológico.”  O Ministério da Educação, ainda na gestão da presidenta afastada Dilma Rousseff, afirmou que a legislação é inconstitucional por contradizer o princípio do pluralismo de ideias, “que só se efetiva diante da diversidade de pensamentos”.

O QUE DIZ A LEI DE ALAGOAS, A PRIMEIRA APROVADA NO PAÍS

T.B

Alagoas foi o primeiro estado a aprovar uma lei inspirada no projeto Escola Sem Partido, no final do ano passado. Ela chegou a ser vetada pelo governador Renan Calheiros Filho (PMDB), mas o veto foi derrubado neste ano na Assembleia. Ela passou a valer no mês passado. Além do Estado, também são discutidas leis similares em Amazonas, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e no Distrito Federal, segundo levantamento do Movimento Professores Contra a Escola Sem Partido

Veja a seguir os principais trechos da Lei 7800/2016 aprovada em Alagoas:

– Fica criado, no âmbito do sistema estadual de ensino, o Programa “Escola Livre”, atendendo os seguintes princípios:

(…)

IV – liberdade de crença;

VII – direito dos pais a que seus filhos menores recebam a educação moral livre de doutrinação política, religiosa ou ideológica;

Art. 2º– São vedadas, em sala de aula, no âmbito do ensino regular no Estado de Alagoas, a prática de doutrinação política e ideológica, bem como quaisquer outras condutas por parte do corpo docente ou da administração escolar que imponham ou induzam aos alunos opiniões político-partidárias, religiosa ou filosófica.

(…)

Art. 3º- No exercício de suas funções, o professor:

 

I – não abusará da inexperiência, da falta de conhecimento ou da imaturidade dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para qualquer tipo de corrente específica de religião, ideologia ou político-partidária;

(…)

IV – ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa, com a mesma profundidade e seriedade, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas das várias concorrentes a respeito, concordando ou não com elas;

 

Projeto inspirado no movimento também está em andamento no plano federal. De autoria do deputado Izalci Lucas Ferreira (PSDB), membro da bancada evangélica da Câmara, ele acabou sendo unido a outro projeto de lei similar já em tramitação, de Eriventon Santana (PEN), membro da mesma bancada. No último dia 16 de maio, o presidente da Câmara em exercício, Waldir Maranhão, autorizou a criação de uma comissão especial para discuti-lo. A proposta quer alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação para acrescentar como uma das bases o “respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, tendo os valores de ordem familiar precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa.” Santana é um dos críticos da chamada “ideologia de gênero”, uma leitura conservadora de uma visão educacional que pressupõe que cada indivíduo tem o direito de escolher o próprio gênero, sem que ele seja definido, necessariamente, pelo sexo biológico.

Criado há 12 anos por um pai indignado com o professor de história da filha, o Escola Sem Partido começou a ganhar um protagonismo maior no ano passado. E, neste ano, entrou na lista de assuntos polêmicos quando o controverso ator Alexandre Frota -conhecido por suas posições extremistas contra a esquerda e por uma aparição na TV em que disse, em um quadro humorístico, ter estuprado uma mulher- foi recebido ao lado de manifestantes pró-impeachment do grupo Revoltados Online pelo ministro interino da Educação, Mendonça Filho, para discutir, entre outras coisas, o projeto, segundo eles.

Longe dos holofotes, entretanto, o movimento já ganhou bastante espaço em muitas esferas políticas. Segundo o grupo Professores contra o Escola Sem Partido, ao menos nove Estados, incluindo Rio de Janeiro e São Paulo, além do Distrito Federal e de diversos municípios, discutem projetos de lei aos moldes de um documento criado pelo movimento.
Tal documento justifica a necessidade da legislação assim: “É fato notório que professores e autores de livros didáticos vêm se utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas”. Entre os artigos do projeto, há a determinação de que o poder público vede, especialmente, “a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero” e diz que entre os deveres do professor está o respeito “ao direito dos pais a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”.
O âmbito das questões “morais” se refere especialmente à sexualidade e isso inviabilizaria, por exemplo, as aulas de educação sexual nas escolas. “Elas teriam que ser optativas, para pais que aceitarem que seus filhos aprendam sobre isso com os professores”, explica o advogado Miguel Nagib, idealizador do projeto.

Educadores qualificam a iniciativa como uma “lei da mordaça” e dizem que, no fundo, as regras impõem uma censura dentro da sala de aula e prejudicam a formação de alunos críticos, já que eles perdem o acesso à diversidade de opiniões.

 

Interferências no currículo

A mesma linha argumentativa dos projetos ligados ao Escola Sem Partido é utilizada por outro projeto de Lei do âmbito federal, que quer fazer com que o Congresso Nacional dê a última palavra sobre a Base Nacional Comum Curricular, um documento que é discutido extensamente com educadores e a sociedade civil desde julho do ano passado. A base determinará o que cada aluno deverá aprender ano a ano e o que se espera que ele saiba, exatamente, ao final daquele período letivo. Depois de consultas públicas que levaram a mais de 12 milhões de contribuições do público em geral, ela segue para a terceira versão, que será apresentada até novembro para o Conselho Nacional de Educação, que deverá aprová-lo. O órgão é composto por especialistas em educação de diversas áreas e pelo próprio Ministério da Educação (MEC).

Apresentado neste ano, o Projeto de Lei 4486 é do deputado Rogério Marinho (PSDB). Ao EL PAÍS, ele afirmou que o Brasil forma educadores de “viés ideológico”. Para ele, no processo de consulta pública da base, feito pelo MEC, não é possível saber se houve uma “triagem” e se só foram consideradas as opiniões que eram parecidas às do ministério, gerido então pelo PT. “As famílias e seus representantes têm que ser consultados. Não há órgão mais representativo do que o Congresso”, ressalta ele. Em nota, o ministério afirmou que “a discussão da base curricular deve ser rigorosamente técnica”. O projeto de Marinho ganhou um relator na Comissão de Educação da Câmara nesta semana e ele acredita que possa ir à votação no colegiado ainda este semestre.

Educadores veem nisso um grande risco. Levar a discussão da base curricular para o Congresso mais conservador que o brasileiro já elegeu pode trazer retrocessos, especialmente para as questões ligadas à diversidade de gênero, como já aconteceu no Plano Nacional de Educação. Católicos e evangélicos, sob o argumento de derrubar a “ideologia de gênero”, fizeram uma cruzada contra a palavra, que se espalhou por diversos planos de educação municipais e estaduais. A palavra sumiu dos textos, mesmo em trechos em que não aparecia explicitamente, mas onde se fazia referência a outras leis em que ela aparecia. Para especialistas, em um país em que a violência contra a mulher é ainda fortíssima, a inexistência da palavra, no contexto de combate à discriminação de gênero, traz prejuízos graves para a formação cidadã de crianças e adolescentes.

“Se as possibilidades de mudança [da base] para o Congresso se concretizam devemos ter justamente o mesmo debate, a mesma briga de caráter político que aconteceu com o Plano Nacional de Educação. Os movimentos da sociedade civil que participaram desse movimento estão articulados e se manifestando contra essa possibilidade”, afirma Alejandra Meraz Velasco, coordenadora-geral do Todos Pela Educação, organização que participa de um movimento em defesa da Base Nacional Comum. “São questões muito específicas da área da educação e se isso for para o Congresso a sociedade só tem a perder”, afirma Alessio Costa Lima, presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação(Undime).

CONHEÇA OUTROS PROJETOS DE LEI

T.B.

Outros projetos de Lei que, segundo educadores, podem trazer prejuízos à educação do país, se aprovados:

 projeto de Lei 7180, apresentado pelo deputado membro da bancada evangélica Erivelton Santana (PSC-BA) em 2014, quer inclui entre os princípios do ensino na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) o respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, dando precedência aos valores de ordem familiar sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa. Situação:Comissão especial foi criada na Câmara no mês passado para analisá-lo

– projeto de Lei 7181 também apresentado por Erivelton Santana (PSC-BA) em 2014, tem o mesmo propósito do projeto anterior, mas busca mudar os parâmetros curriculares nacionais. Situação: Foi unido ao projeto anterior

– projeto de Lei 867, apresentado em 2015 pelo também membro da bancada evangélica deputado Izalci (PSDB-DF), quer incluir na LDB o projeto Escola Sem Partido, que veda na sala de aula “a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes”. Situação: Também foi apensado ao projeto de Lei 7180

– projeto de Lei 1859, criado em 2015 por quatro deputados (três da bancada evangélica), quer acrescentar à LDB a proibição da “ideologia de gênero ou orientação sexual na educação”. Seu único parágrafo diz: “A educação não desenvolverá políticas de ensino, nem adotará currículo escolar, disciplinas obrigatórias, ou mesmo de forma complementar ou facultativa, que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual'”.