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Guimarães Rosa para francês ver

28/03/2016
Guimarães Rosa para francês ver
O escritor mineiro João Guimarães Rosa, que gostava de colocar seus leitores na posição de enfrentamento de seus textos como a "um animal bravo e vivo" (Foto: Reprodução)

O escritor mineiro João Guimarães Rosa, que gostava de colocar seus leitores na posição de enfrentamento de seus textos como a “um animal bravo e vivo” (Foto: Reprodução)

O escritor mineiro João Guimarães Rosa, que gostava de colocar seus leitores na posição de enfrentamento de seus textos como a “um animal bravo e vivo”, passa a ter, a partir deste ano, Estas Estórias, sua obra póstuma de contos, traduzida para o francês pela Editora Chandeigne. A tradução foi realizada por Mathieu Dosse, contemplado pelo programa de apoio à tradução e à publicação de autores brasileiros no exterior da Fundação Biblioteca Nacional (FBN), entidade vinculada ao Ministério da Cultura (MinC).
O interesse francês pela obra do mineiro João Guimarães Rosa (1908-1967) tem mais de cinco décadas. O perfil e a originalidade do autor fizeram dele não apenas um dos maiores escritores brasileiros, mas também um tesouro da língua portuguesa a ser explorada por leitores de outros países.

 

Não foi fácil o desafio de colocar em outro idioma a combinação de erudição com arcaísmos, invenções de termos e expressões populares muito próprias de Rosa, como explica o tradutor Mathieu Dosse. “Foi uma tarefa árdua, mas extremamente prazerosa. Traduzir o Guimarães Rosa é bem diferente de qualquer outro tipo de tradução. Eu diria que existem dois tipos de tradução: a tradução comum e a tradução do Guimarães Rosa”, afirma. “Quando a gente traduz, geralmente, a gente vai buscar equivalências de expressões idiomáticas. Mas Guimarães Rosa não usa expressões idiomáticas… a não ser aquelas que ele próprio inventa! Então, é necessário inventar em francês essas expressões. É preciso usar todos os recursos da língua que traduz (o francês no meu caso), ir procurar no dicionário arcaísmos, regionalismos, inventar neologismos”, conta.
Nas palavras do próprio Guimarães Rosa, em entrevista concedida a Günter W. Lorenz, em 1965, o jeito dele de escrever procurava “permanentemente, constantemente, com o português: chocar, ‘estranhar’ o leitor, não deixar que ele repouse na bengala dos lugares-comuns, das expressões domesticadas e acostumadas; obrigá-lo a sentir a frase meio exótica, uma ‘novidade’ nas palavras, na sintaxe”.
Dosse conta que já havia lido a obra completa de Guimarães Rosa e estudado em detalhe sua poética, mas descobriu também muitas novidades ao traduzir o Estas Estórias. Filho de mãe brasileira e pai francês, o tradutor nasceu no Brasil e foi morar na França quando tinha 10 anos. É doutor em literatura comparada pela Paris VIII e autor de livros e resenhas sobre tradução. Também atua como pesquisador de Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. O doutorado dele foi sobre as traduções do Grande Sertão: Veredas.
A publicação de Estas Estórias na França, sob o título Mon oncle le jaguar, autres histoires, foi notícia de um dos principais veículos daquele país, o diário Le Figaro, que, em 2016, completou 190 anos com a característica de valorizar a relação estreita com a literatura, por ter em suas páginas textos elaborados por escritores como Alexandre Dumas, Charles Baudelaire e Honoré de Balzac.

Confira entrevista com o tradutor:

Mathieu Dosse traduziu Estas Estórias para o francês pelo programa de apoio à tradução e à publicação de autores brasileiros no exterior da Fundação Biblioteca Nacional (Foto: Arquivo pessoal)

Mathieu Dosse traduziu Estas Estórias para o francês pelo programa de apoio à tradução e à publicação de autores brasileiros no exterior da Fundação Biblioteca Nacional (Foto: Arquivo pessoal)

MinC Reportagem: Gostaria de saber como foi a escolha do senhor para traduzir esta obra? 
Mathieu Dosse: Estava procurando um livro de Guimarães Rosa que ainda não tivesse sido traduzido. Existiam dois: Estas Estórias e Ave, Palavra. Já tinha lido o Estas Estórias e tinha achado alguns contos esplêndidos. Então propus alguns trechos à editora Chandeigne (que publica traduções do português) e eles aceitaram.
MR: Qual o conhecimento anterior que o senhor tinha do autor Guimarães Rosa? 
MD: Fiz meu doutorado sobre todas as traduções * do Grande Sertão: Veredas. Então tinha já um bom conhecimento da obra do autor. Já tinha lido a obra completa dele (ou quase) e estudado em detalhe sua poética. Mas descobri também muita coisa nova traduzindo o Estas Estórias.
MR: Como foi o desafio de traduzi-lo? Isso porque a leitura dele é considerada difícil no próprio Brasil. 
MD: Foi uma tarefa árdua, mas extremamente prazerosa. Traduzir o Guimarães Rosa é bem diferente de qualquer outro tipo de tradução. Eu diria que existem dois tipos de tradução: a tradução comum e a tradução do Guimarães Rosa. Quando a gente traduz, geralmente, a gente vai buscar equivalências de expressões idiomáticas. Mas Guimarães Rosa não usa expressões idiomáticas… a não ser aquelas que ele próprio inventa! Então, é necessário inventar em francês essas expressões. É preciso usar todos os recursos da língua que traduz (o francês no meu caso), ir procurar no dicionário arcaísmos, regionalismos, inventar neologismos… além disso, a própria leitura do texto original é difícil, porque o autor não está mais vivo para esclarecer os sentidos. Tive a ajuda do Léxico de Guimarães Rosa, feito por Nilce Sant’Anna Martins, em 2001, um livro indispensável para qualquer tradutor do autor mineiro.
Quando a gente lê o Guimarães Rosa, a gente pode se deixar impregnar pela leitura, não é necessário entender tudo, a gente pode se deixar levar pelo ritmo do texto. Mas como tradutor, isso não é possível. É necessário entender pelo menos um sentido, para depois começar a traduzir. Mas é importante manter a polissemia, os múltiplos sentidos, não reduzir o texto a um sentido só. Toda tradução clarifica um pouco o texto original, mas fazer isso muito, esclarecer demais o texto, não é fazer jus a Guimarães Rosa. O texto quer ser, às vezes, enigmático. Como diz o próprio autor, ele quer “estranhar” o leitor. Então, mesmo se ajudei o leitor de vez em quando, eu também tentei manter essa forma de estranheza na minha tradução francesa.
Como diz o André Markowicz, que é um dos maiores tradutores franceses do russo (traduziu todo o Dostoiévski): “quando a gente lê, nossos olhos deslizam; quando a gente traduz, nossos olhos mergulham. A tradução é uma leitura vertical”. Eu sinto muito isso traduzindo o Guimarães Rosa, porque cada palavra é um abismo. A gente pode passar horas, dias, procurando a palavra certa. Anos até… eu até hoje procuro a palavra certa para traduzir o “nonada” que abre o Grande Sertão: Veredas. Encontrei algumas soluções, mas nada ainda que realmente me satisfaça.
MR: O que acha do estilo da escrita de Guimarães Rosa? Ele é popular aí na França? Que tipo de público francês procura mais este tipo de obra para ler?
MD: Guimarães Rosa foi traduzido nos anos 60 e 70, mas as traduções eram péssimas. Ele foi então muito mal recebido aqui na França. Algumas críticas destruíram o Grande Sertão: Veredas, julgando-o um livro sem valor. O cúmulo! Mas, a partir dos anos 80 e 90, tiveram novas traduções, bem melhores, e ele começou a ser conhecido. Mas ainda falta muito trabalho para ele ser tornar um autor verdadeiramente reconhecido. De qualquer forma, não vamos nos iludir, ele não vai se tornar um autor “popular” aqui na França. Mas imagino que ele possa pelo menos ser reconhecido, e lido, como um dos autores mais importantes do século passado.
MR: Só uma curiosidade: teve algum trecho (pequeno) da obra que o senhor traduziu que foi mais intrigante ou mais complicado para achar as palavras adequadas no seu idioma?
MD: Não diria algum trecho específico, mas várias pequenas expressões, que por vezes são realmente enigmáticas. Mas talvez o conto Retábulo de São Nunca tenha sido um dos mais difíceis. Essa frase, por exemplo, foi difícil: “Só o absurdo do possível era que uma moça ia casar-se”. Ou essa: “Sucedendo — vez — e nem por quadra nenhuma de luar que Reisaugusto veio, de grande apaixonado repente, galopando, e chegou, tão tarde, ante a Fazenda Cobrença, já adormecida, tardio de adiantado e apressado então ele chegara, somente para ficar, a cavalo, persistido, teso, quieto, sobre o fronteiro morro, todas as seguidas escuras horas dessa madrugada, durante, varada completa: a fim de, parado, montado à decente distância, poder de lá contemplar, paciente fremente, acostumando os olhos, o quase caber na noite da casa-grande, com as altas, fechadas janelas — ele assim esperando, orvalhado, inteirado, sem se sacudir de cansaços, o raiar do dia, Ricarda Rolandina, o que parecia uma glória” (p. 297).
O elemento rítmico é essencial e é difícil traduzir isso… é necessário procurar palavras que sejam tão sonoras quanto às brasileiras, mas ao mesmo tempo a frase tem também que fazer algum sentido.
Veja o trecho acima em francês:
“Il arriva — une fois — et sans même les pourtours d’un clair de lune, que Reisaugusto vint, d’un soudain élan amoureux, galopant, et arriva, aux heures avancées, devant la Fazenda Cobrença endormie, tardivement empressé il arrivait en avance, et resta ainsi, à cheval, insistant, immobile, quiet, sur le mont frontalier, pendant tout le cours des heures sombres de ce crépuscule d’aube, traversée absolue : ceci afin de pouvoir, à cheval, calme, à distance décente et frémissant patiemment, habituant ses yeux, contempler la nuit finissante sur la grande bâtisse et ses hautes fenêtres closes — attendant ainsi, enrosé, comblé, sans secouer sa fatigue, le lever du jour, Ricarda Rolandina, telle une gloire.”
Sobre a editora 
A editora Chandeigne, criada em 1992, é especializada em relatos de viagens e assuntos relacionados à cultura de países de língua portuguesa. Entre seus autores brasileiros publicados estão Ana Maria Machado, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos e Vinícius de Moraes.
Sobre o autor 
João Guimarães Rosa morreu três dias depois de tomar posse na Academia Brasileira de Letras, em novembro de 1967. Formou-se em Medicina e chegou a trabalhar como médico, mas prestou concurso e entrou para o corpo diplomático brasileiro. Teve missões na Alemanha, Colômbia e França.
Poliglota, desde menino era fascinado em aprender várias línguas. Falava francês, inglês, alemão, espanhol, italiano, esperanto e russo. Iniciou a carreira como literário, em 1929, ao ganhar com seus contos o concurso oferecido pela revista “O Cruzeiro”. Aquele foi apenas um dos prêmios que ganhou, entre outros, como o Filipe d’Oliveira e Machado de Assis.
Mas foi com a investigação da vida do sertanejo, costumes e crenças, com a obra Grande Sertão: Veredas, que passou a ser aclamado pela crítica por suas inovações na escrita, seu jeito peculiar de uso de criação e recriação de palavras.
“Meu lema é: a linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive; e como a vida é uma corrente contínua, a linguagem também deve evoluir constantemente. Isto significa que, como escritor, devo me prestar contas de cada palavra e considerar cada palavra o tempo necessário até ela ser novamente vida. O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas”, disse João Guimarães Rosa em entrevista a Günter Lorenz em “Diálogo com Guimarães Rosa”.
* São traduções para treze línguas: francês, espanhol, italiano, catalão, inglês, alemão, sueco, norueguês, holandês, dinamarquês, checo, eslovaco e polonês.