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Casas de farinha do Agreste inovam no uso de resíduo venoso da mandioca

22/05/2015
Casas de farinha do Agreste inovam no uso de resíduo venoso da mandioca
O APL Mandioca, no Agreste de Alagoas, tem atualmente como público alvo um universo de 2.040 agricultores familiares, três cooperativas de produção e 84 associações comunitárias distribuídos em 15 municípios (Foto: Carla Cleto)

O APL Mandioca, no Agreste de Alagoas, tem atualmente como público alvo um universo de 2.040 agricultores familiares, três cooperativas de produção e 84 associações comunitárias distribuídos em 15 municípios (Foto: Carla Cleto)

Mandioca ou macaxeira? Ela pode receber diversos nomes, dependendo da região do país, mas uma coisa é certa: a mandioca possuiu uma alta concentração de ácido cianídrico, o que pode ser até letal. É por esta razão que a macaxeira – conhecida como mandioca mansa – chega à mesa de muitos brasileiros. Através da mandioca, ‘a braba’, apenas a farinha e a goma desta raiz são recomendações saudáveis que podem fazer parte do consumo familiar.
A mandioca pode, no entanto, ser consumida sem causar danos à saúde. Mas, para isso, ela precisa passar por vários processos que eliminam o ácido cianídrico. E são nessas etapas que surge a preocupação com o meio ambiente, porque algumas casas de farinha do Agreste alagoano estão fazendo o destino incorreto desse ácido chamado de manipueira: o resíduo venenoso está sendo despejado diretamente no solo, contaminando o lençol freático.
São denúncias como essas que despertam as instituições e a própria comunidade a encontrar saídas para melhorar as condições ambientais do estado e garantir uma melhor qualidade de vida de quem sobrevive da mandioca e de quem faz dela um alimento para o consumo. Por isso, é preciso ficar atento para diferenciar esses símbolos da culinária nordestina – a mandioca mansa e a braba –, esta que é usada pelo setor agroindustrial e pode levar a sérios riscos de saúde.

Novos destinos da manipueira geram lucro para as casas de farinha

As casas de farinha, tanto de fabricação de farinha de mesa como a de goma, geram subprodutos sólidos (casca, varredura e bagaço) e líquido (manipueira) com elevado potencial poluidor. Também durante o processamento da farinha, diversas substâncias tóxicas são lançadas no ambiente deixando trabalhadores e a população que vive em seu entorno susceptível à contaminação.
No povoado Maracujá, em São Sebastião (AL), a casa de farinha do seu Domiro encontrou novas formas de aproveitar essas substâncias tóxicas a partir de um destino consciente e lucrativo para a farinheira, preservando ainda o meio ambiente e a saúde de todos que fazem da mandioca o seu sustento.
“Aqui são produzidas dez toneladas de mandioca por semana e quatro mil litros de manipueira”, conta Claudomiro Batista, mais conhecido como seu Domiro, que herdou a casa de farinha da família e há dez anos conseguiu construir uma farinheira mais moderna. Segundo ele, sempre que sobra manipueira além do uso da sua própria casa de farinha, ele doa para outros povoados.

Entenda o processo

O processo de produção da farinha da mandioca, na casa de farinha do seu Domiro, assim como em muitas outras do Agreste alagoano, começa já na plantação, passando pelo processamento, curral e palmas. São nessas duas últimas etapas que as substâncias tóxicas são aproveitadas para uma nova finalidade.
Todo o processo de produção da farinha e da goma de mandioca consiste em eliminar os resíduos venenosos para que o produto final possa chegar com segurança à mesa da população e servir como um alimento de qualidade. Seu Domiro explicou que é no momento da prensagem que a manipueira é liberada: “esse líquido amarelo venenoso desce pelo ralo e entra numa tubulação que é guardada num reservatório colocado fora da farinheira”.
Após o tempo necessário para eliminar os tóxicos (três dias), seu Domiro usa essa manipueira como ração para o gado, misturada à maniva (haste da mandioca), casca de mandioca, pó de arroz e farinha de trigo. “Essa mistura serve como medicamento. O gado não cria carrapato e fica bem alimentado. E ainda pego um bom preço pela venda do animal”, contou ele, que aprendeu a fazer esse uso da manipueira através das capacitações do Arranjo Produtivo Local – APL da Mandioca.
A gestora do APL Mandioca no Agreste, Jeane Vilarins, explicou que grande parte dos produtores utiliza a manipueira também como fertilizante e inseticida natural, além do seu uso na alimentação animal. “Existem projetos no APL para utilizá-la na produção de bioenergia e biofertilizante nas casas de farinha e nas lavouras, bem como na produção de sabão, vinagre e tijolo ambientalmente sustentável”, acrescentou.
No entanto, seu Domiro alertou que a inserção da manipueira na ração animal deve ser aos poucos, para que haja uma adaptação do gado para esse tipo de alimentação. Já o uso desse resíduo como fertilizante e inseticida é recomendado apenas para as palmas, porque outras plantações podem não resistir ao ácido.

Ácido cianídrico: os riscos aos trabalhadores e à população

“Arde quando cai nos olhos”, revela seu Domiro, entre os poucos relatos de problemas de saúde ouvidos por esta reportagem na passagem pelas casas de farinha de Alagoas. Mas o problema é grave, de acordo com o químico e professor da Ufal, Wander Botero, que desenvolve um projeto financiado pelo Programa de Pesquisa do Sistema Único de Saúde (PPSUS) acerca da presença do ácido cianídrico nas casas de farinha do Agreste alagoano, em relação à exposição ocupacional e riscos aos trabalhadores e população.
“A pesquisa está investigando os diversos compartimentos ambientais – atmosfera e água – que atuam como fontes e meios de contaminação, buscando principalmente subsídios para diminuir a exposição desses indivíduos”, esclareceu o pesquisador. Ele se propõe ainda a elaborar meios para utilização sustentável de resíduos ricos em ácido cianídrico, evitando seu aporte para o ambiente.
No Agreste alagoano, mais de 26 mil trabalhadores convivem com essa exposição, o que caracteriza um problema de saúde pública, pela ação tóxica do ácido cianídrico, atuando principalmente no sistema nervoso central. Para a técnica da Ciência e Tecnologia da Sesau, Maria José Castro, “pesquisas já comprovaram que a exposição de trabalhadores do Agreste alagoano ao ácido cianídrico provoca alterações clínicas e laboratoriais e o PPSUS é uma oportunidade de promover a saúde a partir de uma mudança de conduta”.

Sintomas

O ácido cianídrico liberado durante o processamento da mandioca pode causar efeitos adversos aos trabalhadores por meio da atmosfera, dos próprios resíduos ou pelas águas. Segundo Botero, o gás tem meia vida na atmosfera de 530 dias, sendo susceptível à absorção pelos trabalhadores. Já a manipueira, gerada no momento da prensagem da massa ralada para a fabricação da farinha é altamente poluente.
“A inalação ou absorção de concentrações de ácido cianídrico em torno de 546 mg/L por 10 minutos de exposição, pode ser fatal”, alertou o pesquisador. Ele esclareceu que a exposição aguda, em humanos, a níveis elevados do ácido cianídrico, causa um breve estágio de estimulação do sistema nervoso central seguido de depressão, convulsão e até a morte. Já a exposição crônica a baixas doses é relacionada com distúrbios neurológicos e disfunção da glândula tireoide.

Manipueira despejada diretamente no solo contamina o lençol freático e compromete a água de cacimbas

O pesquisador Wander Botero informou que na maior parte das casas de farinha do Agreste alagoano não há uma política de armazenagem adequada dos resíduos (manipueira) ricos em ácido cianídrico. “Este resíduo é na maior parte das vezes lançado diretamente em corpos d´água próximos às casas de farinha, sendo que muitas vezes esses corpos d’água servem para abastecimento dos trabalhadores e da população, podendo causar contaminação e riscos à saúde dos que utilizam dessa água”, alertou.
Essa situação foi denunciada à reportagem durante visita a uma casa de farinha no povoado Salobro, em São Sebastião. A farinheira destina o resíduo diretamente no solo, num buraco cavado e a céu aberto. Funcionários do local, quando questionados sobre o destino incorreto do resíduo, afirmaram que eles estavam “se organizando para providenciar uma caixa d’água para servir como reservatório da manipueira”.
“Aqui tudo é lucro. A gente vende até a manipueira”, contou um funcionário da farinheira. Enquanto há ganho para uns, a situação complica para a vizinhança. A água de três cacimbas no entorno dessa casa de farinha já está comprometida. “Estamos recorrendo aos parentes para consumir água de qualidade. Dessa água não bebemos mais”, disse.
E não é apenas o destino incorreto da manipueira que prejudica o meio ambiente e consequentemente a saúde das famílias que vivem no entorno das farinheiras. Num local como esse, visitado e denunciado à equipe de reportagem, as condições de trabalho não são as preconizadas pelos órgãos responsáveis pela fiscalização.
“Precisamos de saúde”, ecoava a voz de um dos trabalhadores com receio de punição. São vozes que convivem diariamente com uma jornada excessiva de trabalho e num ambiente sem condições de higiene: moscas coexistem com as mandiocas que são descascadas e pisadas pelos próprios trabalhadores da farinheira, que não tem o cuidado com o alimento que, no final do processo, chega à mesa dos alagoanos.

Economia da região: no Agreste de Alagoas, 26 mil produtores têm a mandioca como fonte de renda

O APL Mandioca, no Agreste de Alagoas, tem atualmente como público alvo um universo de 2.040 agricultores familiares, três cooperativas de produção e 84 associações comunitárias distribuídos em 15 municípios. Arapiraca é o centro geográfico do APL Mandioca, que coincide também com a parte central do Estado.
“Essa posição estratégica facilita o escoamento da produção, pois é bem servido de boa malha rodoviária, facilitando o acesso intra e interestadual, sobretudo os que compõem a Região Nordeste”, esclareceu a gestora do APL Mandioca no Agreste, Jeane Vilarins. Segundo ela, a infraestrutura do APL pode ser representada pela infraestrutura de Arapiraca.
Com relação à infraestrutura produtiva, um universo de 26 mil produtores de mandioca existem na região de abrangência do APL, além de 587 agroindústrias, sendo 533 informais e apenas 54 formais. Desse universo, a gestora do APL pontuou que 22 unidades foram revitalizadas, como uma fecularia com capacidade de processar 50 toneladas por dia de raiz de mandioca.
Outro dado que aponta para o crescimento da produção é uma casa de farinha particular, em fase de conclusão de instalação, 100% automatizada, com capacidade de processar 60 toneladas diárias de raiz. Também uma unidade de padronização e empacotamento de farinha, com capacidade de empacotar diariamente 20 toneladas de farinha.

São Sebastião

Ainda de acordo com os dados do APL Mandioca, o município de São Sebastião, onde a reportagem também esteve, possui 346 casas de farinha. Segundo a engenheira agrônoma Patrícia Nanes, extensionista da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), a cidade possui pouco mais de 32 mil habitantes, dos quais cerca de 70% da população têm no cultivo da mandioca a sua fonte de renda.
“Para as famílias que vivem da agricultura familiar, desenvolvemos um trabalho de beneficiamento do produto, agregando valor à farinha e à goma”, contou a extensionista do Emater. Patrícia Nanes disse ainda que os agricultores são orientados para o manejo correto desde a produção da mandioca ao produto final que chega à mesa de muitos alagoanos.
Existe ainda o apoio do APL Mandioca nas práticas de fabricação de produtos que têm o tubérculo como base, como a tapioca, o bolo de massa puba e o pé de moleque. “Isso garante um alimento seguro por meio de uma atividade que obedece aos critérios de qualidade e também encontramos assim uma nova fonte de renda”, contou Erivanda de Oliveira, filha de Domiro, que faz parte de um grupo de mulheres de São Sebastião beneficiado com a produção de mandioca.

Uma família sustentada pela cultura da farinha de mandioca

“O que tenho eu devo a mandioca. E olha que eu não tenho quase nada”, disse seu Domiro, que, aos 59 anos, acredita que sobreviver da roça é trabalhar muito e ganhar pouco. Assim como a família de seu Domiro, que educou três filhos no povoado Maracujá, em São Sebastião, muitas famílias do Agreste alagoano vivem da agricultura familiar, mas especificamente do cultivo da mandioca.
No Povoado Congo, também em São Sebastião, a casa de farinha do seu Benedito produz uma média de 30 a 40 sacos de farinha de mandioca por semana – o que corresponde a 1.500 a 2 mil quilos do produto. Do plantio ao produto final, toda a família do José Benedito da Silva, proprietário da farinheira, se envolve no processo.
“Sempre trabalhei na roça e há oito anos tenho a própria casa de farinha. Assim, a vida melhorou um pouco, porque, através da roça, consegui construir minha farinheira”, contou seu Benedito, revelando a preocupação de “ficar velho e não servir mais para a roça”.
“É daqui que tiramos o pão de cada dia, para mim e toda a família que trabalha junto”, disse Iraci Barbosa, esposa de Benedito. “O que produzimos é o que nos alimenta”, completou dona Iraci, que disse que paga pouco, são apenas R$ 0,06 a cada quilo de mandioca descascada, mas é o valor que a família pode custear a partir do que é ajustado com o atravessador, muitas vezes um preço que “não dá para negociar”.