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Cyro Rocha

24/09/2014
Cyro Rocha

    Escudando-se em Cedric, um personagem aparentemente
fictício, o advogado e professor Cyro Rocha presenteia-nos com uma biografia, muito bem escrita, retratando Maceió a partir da década de trinta, narrando fatos e acontecimentos reveladores dos encantos e das distorções da província, bem como o fervilhar do desenvolvimento da cidade de São Paulo e a beleza singular do Rio de Janeiro.
Inicia  sua narração dizendo da influência sofrida por sua vida, após os japoneses bombardearem a frota de guerra norte-americana, estacionada em Pearl Harbour, uma das ilhas do Havaí. Estudante interno no Colégio Mackenzie, na capital paulista, cursando o pré-vestibular de engenharia, conseguiu “criar coragem para arrancar-se de vez daquelas detestáveis aberrações matemáticas e assuntos correlatos, rompendo com o projeto de realizar o acalentado desejo paterno de vê-lo engenheiro”.
Vocacionado para as Letras, concluiu o Curso de Direito e dedicou-se ao estudo das línguas estrangeiras, sobretudo o francês e o inglês, idiomas que veio a dominar fluentemente.
Atendendo orientação do pai, voltou, de navio, para Maceió, quando viveu todas as angústias da perspectiva de um ataque, de surpresa, dos submarinos alemães. Filho de um grande comerciante de exportação de açúcar e melaço, descreve, com muita nitidez, a orla e as ruas que formavam o conjunto do bairro de Jaraguá, onde a cidade de Maceió nasceu.
“O porto de Jaraguá estava sempre coalhado de barcaças, carregadas de açúcar, vindo dos engenhos do interior, na faixa litorânea e os situados às margens das duas grandes lagoas, Mundaú e Manguaba, além das pesadas alvarengas, já carregadas do mesmo produto, que, nas pontes dos trapiches, aguardavam o momento de acostar nos navios e transladar a carga.
Vistos de bordo, os trapiches pareciam grandes sapos, com seus compridos braços estirados até o mar, sustentados por uma infinidade de morões de madeira de lei, lembrando também gigantescas centopéias. Sobre essas pontes e penetrando nos armazéns através das ruas, havia uma vasta rede de trilhos de ferro de bitola estreita, do modelo inventado pelo engenheiro francês Decauville, desses também usados na Europa nas minas de carvão. Formavam aqui uma extensa rede que ia do início da rua Sá e Albuquerque, onde ficam os armazéns da firma Leão, até o fim, na antiga ponte do Pohlmann, onde ficavam os armazéns das firmas Rocha Irmãos e Nobre Irmão.
Os trabalhos pesados eram realizados à mão, isto é, à força do braço humano ou, como dizem os espanhóis, traccion a sangre.  E, assim, foram assentados os alicerces de toda a riqueza açucareira das Alagoas e outros centros econômicos, por este mundo afora. No interior dos armazéns, os sacos eram colocados nas cabeças dos trapicheiros e arrumados em pilhas até o teto, o que exigia grande força muscular para galgar, repetidas vezes por dia, essas alturas”.
Acadêmico de Direito no Rio de Janeiro, conseguiu  estágio em escritórios de advocacia, cível e tributária, convivendo com a grandeza e a fragilidade humana.
Advogado, decepcionado com a prática da advocacia, onde só encontrara “falta de caráter e maus procedimentos”, atribuía tudo isso à ausência de calor humano das cidades grandes, onde ninguém se conhece e cada qual luta para esfolar o próximo, arrancando-lhe, sem pena, o pão. Desejoso de retornar à terra natal, onde esperava não encontrar tanta indignidade, foi aconselhado por um amigo alagoano a “nem pensar nisso, asseverando que tudo é muito pior, no meio pequeno”.
Retornando a Alagoas no governo Arnon de Mello, foi nomeado Diretor de Pessoal do Departamento de Serviço Público. Não se adaptou à rotina da burocracia. Chegou à conclusão de que, caso não fosse o famoso jeitinho brasileiro, que “nada mais é do que uma medida inteligente contra a burocracia”, o quadro administrativo seria muito pior.
Concordando, ou não, com seus pontos de vista, não podemos deixar de reconhecer sua sólida cultura e inteligência privilegiada. Definia-se como uma zebra com o coração de cordeiro. Não nascera para pedir e tinha muito escrúpulo em receber. Um caso perdido. Espinhoso, mas suculento como o mandacaru do sertão, que precisa ser queimado para poder ser comido, nos tempos das grandes secas.
Este era o Cyro Rocha que viveu 87 anos, bem vividos, amou e foi amado, intensamente, e partiu, no último dia 09 de outubro, deixando em lágrimas a esposa, Eneida, companheira por mais de meio século, os filhos, netos e amigos.