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Que resta da doutrina do contrato social?

05/04/2014
Que resta da doutrina do contrato social?

A teoria do contrato social (em qualquer uma das suas clássicas versões: Hobbes, Locke, Rousseau) é fruto de uma ficção. Foi desenvolvida para legitimar a existência do Estado e, ao mesmo tempo, na versão de Locke com as ideias complementares de Montesquieu (que estudou detidamente os três modelos de governo: republicano, monárquico e o despótico e suas respectivas leis – veja Do espírito das leis, 2010, p. 27 e ss.), para limitar e moderar os seus poderes. Até hoje ela gera muita polêmica, porque se trata de uma “razão artificial” (Hobbes). Embora tenha sido o referencial filosófico estruturante de todo pensamento de Beccaria, cuida-se de um dos temas mais controvertidos não somente na filosofia, senão também na política, na economia, na sociologia, no direito, na criminologia etc. A polêmica primeira reside na própria existência do Estado (há quem imagina a existência da sociedade sem o Estado; para outros não tem nenhum sentido falar em sociedade sem Estado).
Preponderou (veja nossa realidade assim como nossas heranças históricas) o pensamento dos que veem o Estado como aparato disciplinar da vida social normatizada (regulada) pelo direito (aprovado pelo Legislativo e Executivo, mas aplicado pelos juízes). O cidadão, ao se inserir (e se reconhecer) nesse aparato normativo (aliás, não tem saída para isso), desenvolve todas as suas relações vitais (contratos, propriedade, união afetiva, democracia, mercado, compra e venda etc.).
Ainda hoje, no entanto, os limites da atuação do Estado permanecem confusos, sobretudo na área econômica e social. A economia gera riqueza, progressos, melhoria de vida para grande quantidade de pessoas, mas, ao mesmo tempo, profundas desigualdades (que eliminam enormes exércitos de pessoas do contrato social). Para alguns pensadores da esquerda o problema central é o direito de propriedade (sustentado ardorosamente, por exemplo, pelo liberal Locke), quer se apresenta como fundamento do capitalismo. Outros entendem (Hegel, por exemplo) que o problema não é o direito de propriedade (o capitalismo), sim, admitir sua posição acima de todos os demais direitos.
Mas se existem abusos e desigualdades (ou seja: rompimentos do pacto social ou do contrato social ideal), quem pode intervir para equilibrar as relações econômicas, políticas, jurídicas e sociais? O Estado, por meio das suas funções essenciais (executivas, legislativas e judiciais). O problema é que a separação entre o Estado e o capitalismo (poder econômico e financeiro) é hoje muito tênue em muitos países. O Estado pode deixar de ser um árbitro supraindividual (independente) para ser transformado em um agente do poder econômico dominante que, sequestrando ou se apoderando completamente do contrato social, passa a comandar não somente o capitalismo econômico-financeiro, senão também a democracia – comprando os parlamentares -, a lei e a Justiça – corrompendo os juízes – assim como a própria sociedade civil – mantendo-a ou transformando-a em inculta e puramente consumista.
Uma das graves anomalias deste princípio de novo século (XXI) consiste precisamente na subordinação da política às enormes corporações financeiras. O capitalismo econômico-financeiro global (nisso é que se converteu a burguesia capitalista do final do século XVIII), sempre contou com o apoio das instituições políticas (tidas como “democráticas”). Na era da globalização (terceira fase do capitalismo) o que mudou foi que agora ele passou a comandar diretamente o poder político, sem passar pelas regulares eleições (Lucas Papademus, na Grécia, Mario Monti, na Itália, e Mario Draghi, no Banco Central Europeu, são exemplos de representantes diretos do mundo financeiro dentro do Estado) (veja Regnasco: 2012, p. 34, que sublinha: “os tecnocratas que originaram a crise de 2008 são os que agora também dirigem a política”). O poder real, em muitos países, já não pertence aos políticos, sim, às megacorporações financeiras. Nada mais se dissimula. Antes o Estado-nação vinha sendo renegado persistentemente pela doutrina liberal econômica, agora, sem nenhuma ocultação, entrou no domínio direto das corporações financeiras.
Quando as instituições essenciais são apropriadas e tiranizadas pelo poder econômico (hoje predominantemente financeiro), não resta outro caminho às classes prejudicadas e desfavorecidas (os marginalizados ou esquecidos pelo contrato social) pressionarem o Estado para que o equilíbrio nas relações econômicas e sociais (as tão sonhadas igualdade e fraternidade, da Revolução Francesa) seja restabelecido. Nos países que seguem o capitalismo evoluído e distributivo e tendencialmente civilizado, fundado na educação de qualidade universalizada (Suécia, Suíça, Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega, Canadá, Coreia do Sul, Áustria, Austrália etc.), essa é uma questão razoavelmente bem administrada (em favor do bem-estar de todos).
Ao contrário, nos países de capitalismo parasitário, selvagem e extrativista, predominantemente financeiro e volátil (que se retira em qualquer momento), que praticamente não mantém qualquer tipo de contato com as massas que fazem a riqueza dos meios de produção, gerando sociedades extremamente injustas e desiguais (Brasil, EUA etc.), continua pendente agudamente a questão (protagonizado desde o princípio pela burguesia capitalista) da igualdade material entre as pessoas.
O capitalismo liberal faz o discurso de que o Estado é desnecessário. Ao mesmo tempo, no entanto, atribui a ele a construção das infraestruturas necessárias para o seu crescimento (energia, transportes, navegação etc.). Nos momentos de crise, também ao Estado o capitalismo pede socorro (promovendo uma espécie de socialismo invertido: socialização dos prejuízos e privatização dos lucros) (Regnasco: 2012, p. 30). São enormes os campos de tensão entre o sistema econômico e o sistema político, especialmente agora que se consolidou o “modelo transnacional de produção”, já não mais sujeito a qualquer tipo de regulação pelos países “soberanos” nacionais. Esse, no entanto, não é o único problema do capitalismo financeiro vigente: em muitos países (EUA, grande parte da Europa, América Latina, África etc.) o que está em jogo é a credibilidade do próprio sistema capitalista, cujas crises não seriam decorrentes dos atos criminosos de alguns gananciosos (tal como ocorreu nos EUA, em 2008) nem tampouco esporádicas, sim, endêmicas (veja Lester Thurow, citado por Regnasco: 2012, p. 40).
De outro lado, é possível que esse Estado se converta num aparato policialesco tirânico (fascista, socialista, comunista, nazista, getulista, militarista, populista etc.), que atropela os direitos e as garantias fundamentais das pessoas acusadas de criminosas, tão didática e decantadamente esgrimidos por Beccaria, em 1764, no seu clássico livro Dos delitos e das penas. Contra essa barbárie do estado policialesco medieval (que hoje está conformado de acordo com a criminologia populista-midiática-vingativa – veja nosso livro Populismo penal midiático: Saraiva, 2013), só resta prosseguir a luta que Beccaria iniciou pela preservação das cláusulas garantistas do contrato social, ou seja, sustentar o respeito às liberdades (estrito respeito ao contrato), que só podem ser restringidas nos Estados civilizados dentro dos angustíssimos limites da legalidade, razoabilidade, proporcionalidade, necessidade etc. Paralelamente a essa luta endógena (dentro do sistema jurídico), nos países em que o contrato social foi ou está sendo apropriado (sequestrado) pelo poder econômico-financeiro, a luta contra-hegemônica exige outras táticas, exógenas, como por exemplo a de deslegitimá-lo em razão da sua própria barbárie, contrária à civilização.
Não só no campo jurídico (limites endógenos) deve funcionar a ideia de limites (limites do Estado de direito), senão também no campo econômico-financeiro. Impõe-se a domesticação do capitalismo. São poucos, mas alguns países vêm conseguindo com tropeços, avanços e retrocessos fazer isso (Dinamarca, Suécia, Noruega, Finlândia, Islândia, Austrália, Bélgica, Coreia do Sul, Alemanha, Holanda etc.), mostrando que os objetivos de expansão e concentração não podem nortear a vida econômica de nenhum país que se queira firmar como nação próspera e civilizada. O conceito de progresso e desenvolvimento, para não se consubstanciar numa barbárie, não pode ser equiparado simplesmente ao de crescimento e consumo desregrado. Ou o capitalismo liberal preponderante muda os seus rumos, comprovando que sua crise é apenas financeira, ou vamos chegar à conclusão de que ele mesmo é a crise eterna.